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Críticas

Ervas Secas (Texto 3)

Nuri Bilge Ceylan e as contradições humanas

Por Ivonete Pinto | 12.03.2024 (terça-feira)

Há muitas entradas para abordar Ervas secas (Kuru Otlar Ustune, 2023). A questão moral predomina, pois está ligada ao contexto político-geográfico-religioso de onde se passa a história.  E o diretor Nuri Bilge Ceylan nos apresenta duas histórias que correm em paralelo e se cruzam para entendermos a moral do professor  Samet (Deniz Celiloğlu): na escola, a denúncia de assédio; na vida privada,  o vínculo com a professora de inglês Nuray (Merve Dizdar, prêmio melhor atriz em Cannes), pretexto para observamos como ele se comporta em relação ao amigo Kenan (Musab Ekici).

A premissa não é novidade entre os filmes cujo tema é a escola e a relação entre professores e alunos. A escola tem sido um microcosmo rico para iluminar valores de grupos sociais de uma determinada época. Inúmeras vezes explorada no cinema, tem como exemplos mais recentes A Sala dos professores (İlker Çatak, Alemanha, 2023) e Monster (Hirokazu Kore-eda, Japão, 2023) sendo que este, inclusive, trata também de assédio. A verdade é que qualquer faísca põe fogo nas relações entre professores, direção, alunos e pais de alunos. 

Samet e Kenan, que dividem a mesma casa, foram acusados de proximidade inadequada com alunas. Na sociedade turca, o caminho natural é o passar pano e o secretário de educação (ou equivalente) engaveta o caso, sem deixar de chamar os professores para uma reprimenda. Não dá para ficar apertando a bochecha de alunas adolescentes, aconselha ele. Os professores negam a conduta. Não temos no filme a versão de Kenan, mas temos cenas que mostram a aproximação de Samet com a aluna. Vemos o suficiente ali. 

Em ‘Ervas Secas’, Nuri Bilge Ceylan aborda as complexidades morais de um professor, Samet, envolvido em acusações de assédio, explorando as dificuldades das relações na escola e na vida pessoal, enquanto a neve na paisagem serve como metáfora visual para as adversidades apresentadas

Antes de mais nada, já que a neve ocupa espaço central na imagem de Ervas secas, é preciso dizer que o vilarejo do filme, pertencente à cidade de Erzurum,  na Anatólia Central, poderia até ser aprazível, mesmo que remoto. Porém, a despeito de uma beleza intrínseca que a neve pode apresentar, há algo mais ali. O plano de abertura com o personagem caminhando com dificuldade nela, demonstra os obstáculos que estão por vir. Não é a primeira vez que Ceylan usa a neve como cenário. Convém evitar reducionismos, mas aqui, mais uma vez a neve é metáfora para as dificuldades rendendo uma plasticidade única. São vários planos abertos com o professor, vestindo roupa escura para dar contraste, caminhando de modo tortuoso na imensidão da neve. Um ser perdido num lugar inóspito, cujo branco total causa quase cegueira.

Igualmente os primeiros planos nos levam a conjecturar sobre uma homenagem aos caminhos de Kiarostami. Aquelas trilhas, atalhos em curvas que os personagens percorrem simbolizando suas jornadas. E assim como o iraniano, Ceylan parece ter forjado o caminho na neve que o professor de arte, Samet, voltando de suas férias, percorre para chegar à escola. O transporte público o deixa longe. Os pés afundam na neve que cai sem trégua, mas como o caminho é visível na tela, sendo que a neve teria coberto qualquer vestígio em poucos minutos, indica uma manipulação do cenário natural, atitude tão corriqueira em Kiarostami. A possível homenagem não é gratuita, já que enuncia a sinuosidade das relações do professor com seus colegas de escola, com amigos (incluindo um militar) e com alunos. Na realidade, uma aluna em especial (Sevim/Ece Bağci), que logo na sua chegada o recebe afetuosamente, no que é correspondida.

O professor, que cumpre compulsoriamente  uma espécie de estágio probatório de quatro anos até poder pedir transferência para uma escola de outra cidade, é surpreendido com a denúncia de assédio. 

O que seria um filme de tribunal, com todas as dúvidas de um Anatomia de uma queda (Justine Triet, 2023),  desfaz-se com a postura do secretário de educação, pois o entendimento deste é que denúncias de assédio, de mau comportamento  de professores chegam com frequência e são exageros. Ou seja, a denúncia não vai adiante. A cultura muçulmana, todos sabem, é deveras conservadora para dizer o mínimo, e no interior da Turquia muito mais do que na cosmopolita Istambul. Então, a questão não é mais um eventual processo judicial, ou mesmo o afastamento do professor. O que importa para Ceylan é desenvolver mecanismos dramáticos para compreendermos a personalidade dos personagens. Como eles agem em situações-limite. 

Em ‘Ervas Secas’, Nuri Bilge Ceylan aborda o conservadorismo muçulmano, submetendo seus personagens a situações-limites

As imagens – Em Ervas secas, o espectador tem a versão do que se passou, através de uma câmera objetiva que não assume o ponto de vista de nenhum personagem específico. O narrador é a câmera de Ceylan. Por ela sabemos como a garota se comporta e como o professor se comporta diante dela. O que passa a interessar é o caráter do professor Samet ao se defender e como vai agregando camadas na relação com o colega Kenan. Como é capaz de agir desonestamente diante da professora de inglês por quem ambos competem, a partir de uma armação. Tudo acontece com muita sutileza, mas, para o espectador, sem margem para a dúvida. 

O público, sabendo que o diabo está nos detalhes, presta atenção nos pormenores de frases e gestos. Então, se o foco do nosso interesse não está exatamente na dúvida quanto ao caráter dos personagens e de por que eles agem desta forma, qual a razão para acompanhar com entusiasmo uma narrativa tão longa (3h17min!) ? 

Porque em Ceylan são oferecidos os meandros das relações por onde vertem os demônios da alma humana. Ele o faz por meio de difusos diálogos aparentemente banais que, no entanto, contêm verdades aqui e ali, que nos servirão para montar um quebra-cabeça quanto à dignidade dos personagens. 

Há sequências, como a visita ao posto militar, sem desdobramentos, que em princípio não precisariam existir. Se justificam, entretanto, porque Ceylan nos dá um painel amplo daquela sociedade cuja instituição policial é onipresente. Que, além do mais, convive com a grave questão curda (desenvolvida mais adiante aqui), motivo de tensão permanente.

Usando o subterfúgio narrativo diegético de que o professor pratica a fotografia como hobby, em duas sequências, vemos retratos que ele fez com moradores do lugar tendo como paisagem a neve. Uma beleza que só não fica sobrando justamente porque o professor tem ligação com a fotografia. De quebra, estas imagens paradas refletem o lugar, refletem uma estagnação contra a qual o protagonista quer fugir, mas parece que lhe falta ânimo. Apenas para comparar com outro filme recente que usa o mesmo artifício: em Dias perfeitos (Wim Wenders, 2023), o protagonista fotografa árvores e flores, como que para registrar algo que um dia não estará mais lá, por conta dos arranha-céus que a tudo destroem. Já Samet, que não tem apego pelo lugar, fotografa por quê? Apenas para justificar que um filme tão realista de repente exibe sequências com imagens fixas? Ou porque Samet vê aquele vilarejo justamente desta forma, parado no tempo, e quer dar forma estética ao seu sentimento de recusa aquele lugar. É como se Ceylan nos dissesse que não há palavras suficientes e tivesse que recorrer às imagens. 

A utilização da fotografia como hobby pelo professor proporciona momentos estéticos que refletem sua desconexão com o lugar, sugerindo uma busca por escape frente à estagnação do ambiente.

Os curdos – Não existem muros e check-points separando o curdistão turco, mas os curdos são os que mais sofrem às investidas da polícia. Em um dado momento, um personagem errático, que deve dinheiro ao professor, diz que vai tentar trabalho em Varto.  Pouco antes, o professor, brincando, o chama de terrorista. Erzurum e a região da Anatólia como um todo possuem herança turca, armênia e curda. Já Varto tem maioria curda, e a menção “terrorismo” no filme por isso não está solta. Depreende-se que o amigo é um aspirante a guerrilheiro.

 É constante a necessidade de mostrar documentos à polícia do presidente Recep Erdoğan, especialmente na região do curdistão turco. Os curdos são vistos como ameaça, inúmeros atentados aconteceram recentemente, inclusive em Istambul. Às vezes, atentados perpetrados pelo próprio governo (não só contra curdos, também contra organizações que fazem oposição a Erdoğan). O filme não enfrenta o tema de modo direto, mas para quem conhece um pouco do contexto, cada encontro, cada fala dos personagens remete à situação política. Poderíamos dizer que é o filme mais político de Ceylan. 

O diretor, nascido em Istambul, sempre abordou criticamente a sociedade turca, com sua herança otomana profundamente marcada pela divisão de classes e conflitos étnicos. Era uma vez na Anatólia (2011) e Sono de inverno (Palma de Ouro em Cannes, 2015) são suas obras mais contundentes neste sentido. Em Ervas secas ele continua na região da Anatólia, onde ficam os famosos  picos da Capadócia. De tempos em tempos, seus personagens situam geograficamente o espectador. A amiga de Samet,  Nuray, que perdeu parte de uma perna  em uma manifestação do sindicato dos professores  na capital, Ancara, por causa de um ataque suicida, diz  em determinada cena: não sei se dou aula de inglês ou se são os alunos me ensinam curdo. É o suficiente para entendermos não só a geografia, como a complexidade das etnias locais.  Entender possivelmente não seja o termo, mas para percebermos que há uma complexidade. Em outro momento,  é citado que dois personagens são da etnia Alauita (uma variante esotérica cultivada pelos xiitas, sendo que a turcos são sunitas) e que por isso devem ter uma sintonia. Em meio às falas em turco, dialetos também podem ser percebidos e funcionam para ilustrar o quão plural é cultura na região.

Os filmes de Ceylan, mesmo lentos, sustentam-se pelos diálogos rápidos, sem maiores concessões ao público estrangeiro, no sentido de que não explicam o contexto como seria explicado numa narrativa clássica hollywoodiana.

Autoridades – Em meio à intrincada teia, o filme nos mostra dois níveis hierárquicos  quanto ao peso das autoridades. Fotos de Kemal Atatürk nas paredes são simbólicas (e realistas), informando da devoção ao fundador da república turca, seu primeiro presidente. Ele foi um marechal nacionalista e reformista, que modernizou a Turquia e ao mesmo tempo  perpetrou o primeiro genocídio da história, o armênio (falemos mais de Atatürk, o “pai dos turcos”,  na sequência). 

O outro nível hierárquico no filme é extensão do primeiro: o aparato policial e militar. Não há fotos de Erdoğan nas paredes, nem mesmo em ambientes onde deveriam estar, como na base policial-militar e na escola, que é pública. Entretanto, as instâncias de repressão o representam, talvez por isso Ceylan fez seu protagonista logo no início do filme visitar um amigo de infância, um policial militar que quer lhe arrumar uma namorada.

O professor não pensa ou age como ele, mas prefere manter o vínculo de amizade. E é essa manutenção de vínculo que torna o filme notável, assim como o foi a subordinação dos empregados e inquilinos ao dono do hotel em Sono de inverno. Às vezes planos curtos, como o que mostra uma bandeira e um jogo de futebol na TV no mesmo enquadramento.  São imagens de cobertura para diálogos que aparentemente não dizem nada, não avançam a história, mas estão eivados de comentários. Muitos deles, nos levam à oposição entre tradição-progresso e secularismo-fé.

Há todo um debate sobre tradição e progresso civilizatório curioso. O professor, que expressa sua vontade de morar na moderna Istambul,  questiona por que não pode dar um presente a uma  boa aluna e reclama da cultura opressiva do lugar, enquanto  o colega retruca que é preciso respeitar a tradição. Ora, a lógica é inversa: é em nome do progresso que as denúncias de assédio são feitas, um progresso relativo aos direitos das mulheres. Mas é o espectador que precisa fazer os raciocínios.

Em ‘Ervas Secas’, Ceylan aborda o embate entre tradição e progresso, exemplificado pelo debate sobre denúncias de assédio e os conflitos entre os personagens em relação à modernização de Istambul.

O professor reage à denúncia sendo esnobe e autoritário com a turma das denunciantes. Em especial a menina que ele supõe que o denunciou. Conhecemos alguém que surgiu como democrata conservador e virou um autoritário truculento: Erdoğan. 

Nas entrelinhas, há um embate recorrente na Turquia, país situado entre o Ocidente e o Oriente. Kemal Atatürk  liderou a revolta para derrubar a monarquia otomana, o califado,  e impor uma ocidentalização forçada (proibiu o shador,  a burka e a poligamia, deu direito das mulheres votarem e serem votadas, acabou com o alfabeto árabe adotando o latino, etc.). Sob o comando de Atatürk, o país separou constitucionalmente  a religião do Estado em 1924,  portanto, há apenas 100 anos.  Desde então, os turcos convivem com o dilema de seguir as tradições ou não. 

Istambul, com seus 16 milhões de habitantes, representa este dilema, pois parte está situada na Europa, parte na Ásia. Por ser uma grande metrópole e estampar a modernidade nos prédios, nos metrôs, aeroportos e vestimentas, é um sonho de consumo para os “modernos” como o professor Samet, que cultivam uma noção de progresso, seguindo um histórico movimento de imigração da Anatólia para Istambul. Buscam melhores condições econômicas e mais liberdade nas relações. E aqui temos o nó górdio: o professor talvez não tivesse seu processo de assédio arquivado tão rapidamente se o caso ocorresse em Istambul. Ele almeja o progresso, mas se nega a enxergar seu próprio comportamento frente às alunas. Ok, a história é menos simples do que aparenta.

O bem e o mal – Os filmes de Ceylan, mesmo lentos, sustentam-se pelos diálogos rápidos, sem maiores concessões ao público estrangeiro, no sentido de que não explicam o contexto como seria explicado numa narrativa clássica hollywoodiana.  Aliás, a quantidade de diálogos é sua marca registrada.  Do mesmo modo que lhe permite sinalizar para os citados meandros das relações,  filia seus filmes ao estilo tchekoviano, sempre evocado por ele mesmo nas entrevistas, ao defender sua preferência por personagens comuns em histórias comuns , que usam realisticamente a fala para expressarem-se. E fala-se muito na vida real. Além de Tcheckov, não podemos esquecer que existe uma alta cultura literária turca, representada por Orhan Pamuk, o Nobel de Literatura, onde os personagens transmitem seus sentimentos através dos diálogos. 

Indo além, convém não perder de vista que o protagonista é um tipo de homem sem qualidades, que se expõe nas mais de três horas do filme em dilemas filosóficos e éticos, recheados de um niilismo dostoievskiano. Samet é também um homem vazio, tal qual um Stiepan Trofímovitch de “Os Demônios”, e sombrio como Raskolnikov de “Crime e Castigo”. Tem uma retórica que defende a correção, mas não titubeia em agir desonestamente diante de determinadas situações, evidenciando que as contradições humanas não têm limites.

Os filmes de Ceylan conectam-se ao estilo tchekoviano e à cultura literária turca.

A discussão sobre o bem e o mal e suas infindáveis variações, sempre está por trás dos roteiros de Ceylan. E por trás deles, a filosofia aristotélica que coloca o bem como postura racional para lidar com os irracionais desejos humanos; o mal, como  a ausência do bem. O diretor turco dá concretude às dicotomias bem versus mal, especialmente nos já mencionados Era Uma Vez em Anatólia e Sono de inverno, como também no anterior Três Macacos (2008). Neles,  somos confrontados com situações envolvendo valores morais, muitas vezes ultrapassando a questão ética e batendo na porta do crime em si. 

Mas assim como o entendimento do que seja agir eticamente pode variar de cultura para cultura, a punição aos crimes também está sujeita à cultura local, principalmente quando as hierarquias, como às ligadas aos militares, ao clero islâmico e à elite econômica, é que determinam as punições.

Assim, se Samet é um personagem que dialoga com outros da obra de Ceylan, convocando autores russos no seu lastro mais visível, há o cenário distante e exótico (não para os turcos, por óbvio), com códigos religiosos particulares. Neste sentido, vemos um homem que mente. Que julga o comportamento de colegas e alunas, mas que está longe de ser um modelo. O roteiro, sem a pressa imposta pelo cinema comercial, explora as vias intrincadas da alma humana, levando o espectador ora para um lado, ora para outro em seu próprio julgamento do personagem. E estas idas e vindas é que tornam um filme como Ervas secas tão interessante, tão acima da média do cardápio cinematográfico apresentado cotidianamente.

Nota final de objeção – O roteiro de Ervas secas é assinado pelo diretor, por Akin Aksue e por Ebru Ceylan. O enredo tem um aspecto documental, pois usou partes do diário de Akin Aksue, que é professor de arte e que trabalhou em uma escola na Anatólia, também compulsoriamente como Samet.   A esposa de Ceylan, Ebru Ceylan, é roteirista de seus filmes desde Três Macacos. Sua presença nos diz que há um olhar sensível  e autorizado para retratar personagens mulheres. Diferente de muitos outros filmes recentes dirigidos e roteirizados por homens que, digamos, se equivocam quando representam  mulheres que sofrem assédio. 

Contudo, para não dizermos que se trata de um filme perfeito, porque perfeito só Cidadão Kane e Deus e o diabo na terra do sol, segue aqui uma objeção. Ervas secas não arrisca deter-se em cenas apenas com as personagens mulheres; elas só existem em relação ao personagem central e pertencem às cenas deles. Pena, pois a menina que acusa o professor de assédio seria uma personagem rica. Há somente uma cena em que ela é o foco, aquela em que duas professoras a interrogam sobre uma carta.  A aluna é absolutamente confusa em seu conflito sobre o afeto ao professor e a raiva por ele não ter devolvido a carta de amor que surrupiaram da mochila dela. A vergonha que ela sente tem um momento tão poderoso quanto o desmaio do menino em frente ao dono do hotel em Sono de inverno. Sorte que Ceylan soube enquadrá-la e dar o tempo necessário no plano para compreendermos uma adolescente apaixonada pelo professor. Seria mais um dos tantos assuntos no filme? Não, seria apenas enfatizar que mulheres, mesmo que ainda em formação, podem ser tão complexas quanto homens maduros. Em qualquer cultura.

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