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Críticas

Dorival Caymmi: Um Homem de Afetos

Para querer adotar Caymmi, ou amá-lo ainda mais (se possível for).

Por Luiz Joaquim | 25.04.2024 (quinta-feira)

Daniela Broitman é corajosa desde o princípio. Pegar nas mãos um deus e tentar resolver uma narrativa a seu respeito em 90 minutos não é desafio para qualquer um. Falamos de Dorival Caymmi: Um homem de afetos (Bra., 2020), seu documentário que chega hoje (25) às salas de cinema do país. Não por acaso, esta semana marca os 110 anos do nascimento do deus baiano.

Provável que algumas dezenas de especialistas e estudiosos de música no mundo já tenham desfiado, e provado quase que matematicamente, o porquê da genialidade de Dorival pela união de sua métrica nas composições, combinadas ao seu timbre de voz e àquela entonação tão particular, banhada pelo charme com o qual acariciava seu violão e virava os olhos de lado com um ar gabola.

Broitman não vai por aí em seu filme. Não prioriza cientificar a genialidade do baiano. Como diz o substantivo no título, é pelos afetos que a roteirista e diretora quer acessar e apresentar o seu cinebiografado.

Está claro que Broitman tem em mãos um tesouro e o espectador fica com a impressão de que muito do todo de Um homem de afetos gira no entorno desse tesouro.

O tesouro é anunciado numa cartela já nos primeiros minutos do documentário: “Filmagem realizada na casa de Lígia e Marcelo Machado, um dos melhores amigos de Caymmi. Ele estava com 84 anos – Rio de Janeiro, 1998”.

Um pequeno tesouro, de restauração impecável

A qualidade do material restaurado é assustadoramente envolvente. Não apenas pelo aspecto técnico (que nos confunde, apresentando imagens que parecem ter sido captadas ontem), mas também conteudisticamente. De modo que Caymmi, o artista, ali, em sua materialidade viva naquele material de arquivo, faz de Um homem de afetos um deleite que nos aproxima da pessoa Caymmi como pouco se vê em outros filmes afins.

Entretanto, o que está ao redor das filmagens de 1998 já não é tão revelador. Afinal, passamos pelos incontornáveis Caetano Veloso e Gilberto Gil, em depoimento de hoje, nos dizendo o que já sabemos. Sobre Caymmi como a matriz #1 para os dois, para João Gilberto, para a Bossa Nova, para a Tropicália e para um mundo de artistas que viriam depois tentando chegar (sem êxito) onde Caymmi chegou quando pensamos em simplicidade e profundidade.

Na fala dos familiares – Dori, Nana e Danilo Caymmi, da ex-nora Ana Terra e da ex-cozinheira Cristiane -, a memória afetiva desse coletivo consegue ajudar sim a moldar o homem, incluindo aí as suas aventuras amorosas – até com Carmem Miranda, dizem, entre outras – que teriam inspirado algumas canções como A vizinha do lado, Dora, Marina e Rosa Morena. Historinhas que, claro, gerariam consequentes tretas com Dona Stella (1922-2010), sua esposa, eterna primeira ouvinte e juiza de suas composições. Stella que, a propósito, abdicou da carreira para dar suporte a do marido.

Stella, a primeira ouvinte, a maior juíza

Há ainda outro tesouro conquistado por Broitman, e que enchem os olhos de quem decidir se deleitar ao lado de Caymmi aqui nessa sessão de cinema. A cineasta resgata The sandpit generals (1983), ficção norte-americana de Hal Bartlett, adaptando Capitães de areia,  que fez sucesso enorme na Rússia, quando Caymmi interpreta (ou tenta interpretar) um pescador enquanto escutamos Canção da partida em russo (!).

Na montagem de Jordana Berg, Um homem de afetos vai sendo bem amarrado em suas várias facetas proposta para desenhar mais o homem e menos o deus.

Mas, independente de qualquer artefato ou articulação linguística que se proponha aqui, o melhor está é na materialidade de Caymmi, como já dissemos. E, ouvindo de sua própria boca  um “Eu gosto de mim. Aprendi a gostar de mim gostando de outros.  É como se aprende a gostar” que o espectador, mesmo aquele ignorante da divindade que está ali falando na tela, corre o risco de querer adotar Caymmi para sempre.

 

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