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Críticas

Crônicas do Irã

O biopoder de Foucault visto por partes

Por Ivonete Pinto | 27.05.2024 (segunda-feira)

Mais um filme de denúncia. Mais uma história que reflete o inconformismo com o regime islâmico que há 45 anos oprime a população iraniana. Não que o Irã produza apenas este tipo de cinema; muitos são os diretores que optam por contar histórias descomprometidas, alheias à realidade política, e outros que recheiam seus enredos com metáforas para que a desinteligência natural dos censores não possa compreender. E ainda bem que ao menos parte dos cineastas iranianos não desistiu de denunciar, de lutar por novos horizontes longe das barbas dos mulás e aiatolás, ou seja, longe da teocracia. Bem entendido que todos que o fazem, filmam fora do sistema, ilegalmente. Em Crônicas do Irã ( Ayeh haye zamini, 2023), nos cinemas do Brasil a partir de quinta-feira (30), o capítulo denominado “Ali”, é o mais didático ao explicar o processo de liberação para que um roteiro possa ser rodado. Se não passar por este processo, é cinema de guerrilha e seus realizadores poderão pagar caro.

O filme surge após o episódio Mahsa Amini (a jovem morta na prisão por supostamente não usar o véu) e precisou da força-tarefa de dois diretores, Ali Asgari e Alireza Khatami, para dar conta dos tantos subtemas que aborda. Participou da seleção oficial Un Certain Regard do Festival de Cannes que, mais que tudo, reconheceu justamente o filme de guerrilha que ele representa.

O imponente plano de abertura, que mostra de cima a gigante capital Teerã amanhecendo, pode enganar. Indica, sim, a diversidade própria de uma cidade com mais de 10 milhões de habitantes, porém trata-se de um filme modesto em termos de produção. Foi rodado em uma semana com a ajuda dos amigos e, óbvio, sem passar pela devida aprovação do departamento de censura do Ministério da Cultura. Apresenta-se através de dez histórias, as tais crônicas do título em português, que têm no formato sua linguagem: frente à uma câmera fixa, vemos, ou apenas ouvimos, personagens conversando com interlocutores fora de quadro. Todos são intitulados com o nome do personagem em questão. Não há rigor com o tempo de cada um. Percebe-se que alguns, como o diretor tentando liberar seu roteiro, renderam mais que outros.

Talhado para plateias estrangeiras, Crônicas do Irã explora assuntos que evidentemente não passariam pelo sistema de controle/censura. Em Davi, o primeiro curta (ou crônica), um homem quer registrar o nome do filho como Davi. Não pode. Sabemos por que não pode (Davi rei dos judeus, etc.). Entretanto, o que importa é a argumentação hilária que a autoridade notarial utiliza. O nome precisa ser persa ou religioso (xiita, de preferência).

Bahram Ark em cena de “Crônicas do Irã”

Na segunda história, Selena, uma menina experimenta a roupa para a cerimônia de passagem para a fase “adulta”. Ainda adolescente, ela deve começar a usar o hejab, cobrindo-se da cabeça aos pés. Ela, uma criança, não parece muita interessada na horrorosa vestimenta e a crueldade do rito é o objetivo da cena.

Na próxima crônica, Aram, uma estudante é chamada pela diretora da escola para confessar que chegou de moto com um namorado. Não pode. No quarto conto, Sadaf, uma mulher deve provar que não era ela quem dirigia o próprio carro. Dirigir pode, mas sem o véu na cabeça, não pode.

No quinto, Faezeh, há uma variação de natureza moral, que busca revelar o cinismo de um regime onde nada pode: uma candidata a emprego passa por humilhação e assédio na entrevista com o empregador. Denúncia da vulnerabilidade das mulheres onde tudo, em tese, é para protegê-las, incluindo a obrigação de não sair à rua com o cabelo descoberto.

Na sexta história, Farbod, um homem quer fazer a carteira de motorista e precisa explicar as tatuagens com versos de Rumi em seu corpo. O conjunto de versos um tanto transgressores escolhidos por ele do grande poeta nacional, não pode.

Hossein Soleimani precisa explicar as tatuagens para conseguir a carteira de motorista.

Na sétima crônica, Siamak, mais uma entrevista de emprego, desta vez um homem é humilhado na sua condição de operário, fazendo crer que a opressão do regime transcende à religião e alcance o conflito de classe.

A oitava crônica, Ali,  que já foi comentada aqui, é sobre a conversa bizarra de um diretor de cinema e o censor. Os diretores foram engenhosos no desfecho, respeitando a inteligência do espectador para a conclusão.

Na penúltima crônica, Mehri, em uma delegacia de polícia uma senhora procura pelo cãozinho levado pelas autoridades. Cães são animais impuros, não pode.

A décima história não tem nome e foge totalmente ao padrão narrativo dos anteriores, adotando um tom não realista. Sentado em uma mesa abarrotada de papéis, um homem muito velho…  Para não dar spoiler, diríamos apenas que tem a ver com terremoto, e naturalmente carrega numa metáfora fácil de entender.

Estas pequenas histórias exploram a natureza grotesca das convenções, regras e leis pelas quais as pessoas são submetidas em nome da sharia (constituição alicerçada no Corão) e suas interpretações. O roteiro da dupla Ali Asgari e Alireza Khatami procurou inserir nestas anedotas do cotidiano o lado obscuro e podre dos que representam o poder. Claro que há muitos exageros para turbinar a dramaturgia, emulando assim o conhecido método  de Jafar Panahi, em que  O círculo é seu melhor exemplo. E também o vencedor de Locarno do ano passado, Critical Zone (ver análise do filme aqui.) Contudo, também está claro para quem acompanha o que acontece no Irã, que todas as situações ficcionais têm um fundo calcado na realidade. Para os cinéfilos, a crônica do cineasta tentando aprovar seu roteiro, é o mais cômico e ao mesmo tempo o que nos permite, no Brasil, relacionar com o que já vivemos durante a ditadura civil-militar.

Burocratas incultos e obtusos, interferindo em roteiros nos quais não têm a menor capacidade para entender. O diálogo afiado, elevando a bizarrice à 10ª potência, faz deste capítulo o mais provocativo do filme: ao falar de cinema, está falando do país como um todo.

Foucault – Note-se que Crônicas do Irã, como título, é bastante genérico e em nada ajuda no título original “Ayeh haye zamini”. Por e-mail, uma amiga iraniana, a crítica de cinema Azadeh Jafari,  explica que “Ayeh ou Ayah” no Islã refere-se aos versículos do Corão que são considerados sagrados, divinos e até mesmo seriam as palavras de Deus. Portanto, o título traz um toque irônico ao combinar duas palavras opostas. Ayeh (Ayeha) representa os aspectos terrenos, ligados à existência humana e à vida na terra.

Pôster internacional de “Ayeh haye zamini”

Conclui-se, então, que o título da produção em inglês acabou sendo mais aproximada do original em farsi, “Terrestrial Verses”, pois amplia sua dimensão. Se pensarmos na dimensão política, percebemos que a ingerência do Estado na vida das pessoas pode mudar de endereço se substituirmos as questões pontuais que o filme exibe.

O release de lançamento do longa informa que ele foi “inspirado pelas ideias de Michel Foucault a respeito dos conceitos de biopolítica e biopoder”. Foucault, que por sinal se engraçou com a Revolução Islâmica de 1979 defendendo-a à época (ninguém é perfeito), serve como uma luva para enxergarmos as opções temáticas das histórias contidas em Crônicas do Irã. A forma como o poder dominante controla as populações, determinando o comportamento em sociedade, no filme ganha nítidos contornos. Como se desenhasse para o espectador como as coisas acontecem por lá. Já para um espectador iraniano que porventura o veja em links contrabandeados, esta clareza soará didática demais. Evidente está, também, que é um produto para exportação, embora tenha chaves culturais que estrangeiros dificilmente acessam.

Na comparação com um grupo de filmes iranianos recentes, em que se destacam os do oscarizado Asghar Farhadi, este filme lançado no Brasil pela Imovision carrega as tintas no humor. Tira do absurdo a comicidade para revelar que as denúncias não precisam ser mal humoradas. Certamente, Mohammad Rasoulof, que acabou de fugir do Irã para estar em Cannes com seu The Seed of the Sacred Fig, não consiga enxergar o cenário com humor. Ser preso numa cela iraniana não tem a menor graça. De qualquer forma, todos lá estão lutando, cada cineasta a seu modo, para conquistar um mínimo de liberdade.

Infelizmente, nada indica que os movimentos contestatórios estão em vantagem. O presidente Ebrahim Raisi, que  morreu há uma semana em um acidente de avião, provavelmente será substituído por outro tão linha dura quanto. Ou pior. Talvez  quem vencerá as “eleições”, ao que dizem, seja o filho do líder supremo Ali Khamenei. Por ironia, este regime trocou a monarquia do Xá Reza Pahlevi,  denunciando o nepotismo inevitável de um reinado. Por isso Foucault ficou tão entusiasmado. Deve estar mais uma vez se virando no túmulo.

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