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Críticas

Furiosa – Uma Saga Mad Max (Texto #1)

Como preservar a humanidade diante do horror?

Por Yuri Lins | 23.05.2024 (quinta-feira)

Foi com espanto que, em 2015, assistimos ao retorno da série Mad Max, agora em um novo capítulo moderno, sem o astro Mel Gibson, mas ainda sob a direção de George Miller.  Desde o início, houve desconfiança. Os primeiros trailers anunciavam um trabalho visual mais estilizado comparado aos filmes originais. O deserto ao sol estava muito mais laranja, e as noites eram pinceladas com um azul muito mais profundo. Por vezes, ficava-se com a dúvida se toda aquela vastidão arenosa  possuía sequer um grão de realidade ou se era apenas a recriação de um mundo sobre uma tela verde.

Havia também a questão da ação; todas as prévias se concentravam nas cenas mais hiper-realistas e megalomaníacas, no qual o uso de efeitos visuais digitais agradava ao público médio de blockbusters, mas deixava órfãos os defensores dos efeitos práticos. Se havia um elogio inequívoco ao talento de George Miller, era sua habilidade com a composição cinética das cenas de ação. A mínima possibilidade de que ele tivesse abandonado essa habilidade era extremamente preocupante.

Qualquer receio foi dissipado à primeira sessão de Mad Max: Estrada da Fúria. Miller construiu um filme de ação retilínea e constante. Desde a primeira aceleração dos veículos apocalípticos através do deserto, a narrativa avançava sem respiro, fundamentada na orquestração do tempo presente, em que qualquer evolução dramática ocorria no meio da cacofonia. Do início ao fim, a ação era tão bem composta, tão matematicamente pensada e operada que transbordava para uma dimensão abstrata e extremamente sensorial. Tudo fascinava.

A Furiosa assume várias identidades, sempre mante do o silêncio como uma blindagem

Na expansão do universo de Mad Max, a principal inovação trazida por Estrada da Fúria estava na personagem Furiosa, interpretada por Charlize Theron. Embora Max ainda fosse o protagonista, agora interpretado por um lacônico Tom Hardy, Furiosa roubou a cena ao se tornar a ilha emocional em meio à ação. Sua missão de salvaguardar a possibilidade de redenção em um mundo há muito degenerado pela violência encontrava na superfície do seu rosto, por vezes rígida e compenetrada, outras vezes vacilante e temerosa, a tela propícia para a comunicação de suas nuances emocionais, que precisavam ocorrer em meio à profusão caleidoscópica das imagens e sons.

Depositamos em Furiosa a vontade de continuidade da série, e George Miller, também apaixonado por sua criação, compartilhava desse desejo. No entanto, seu próximo passo não foi o de  continuar a saga da personagem a partir do ponto em que Estrada da Fúria terminava. Nove anos após o retorno da franquia, estreia nos cinemas Furiosa: Uma Saga Mad Max (EUA. 2024), prequel em que Miller optou por preencher com o passado aquilo que no filme anterior permanecia um mistério. 

Furiosa não possui o mesmo tipo de construção narrativa em ação constante e retilínea como seu antecessor. Ele permite momentos de silêncio e estagnação, contextualizando muito mais sobre aquele universo e as relações entre os personagens. Conhecemos mais sobre a organização social daquele mundo, os feudos que o regem e a economia baseada na bala, na água e na gasolina.

O Senhor da Guerra Dementus (Chris Hemsworth) e o seu bando.

Charlize Theron sai de cena, e as atrizes Alyla Browne e Anya Taylor-Joy entram para interpretar a personagem em sua infância e adolescência, respectivamente. Miller dividiu o filme em capítulos, cada qual contendo uma faceta da vida de Furiosa. O primeiro capítulo começa exatamente em um momento de cisão: num oásis no meio do deserto, a pequena Furiosa é capturada por um bando de motoqueiros. Esse oásis é a terra das Vulvalinas, uma sociedade de mulheres que busca viver de forma comunitária, mantendo aquele paraíso em segredo.

Enquanto os motoqueiros rumam para o covil do bando, começa uma perseguição. A mãe de Furiosa corre para salvar sua filha e, ao mesmo tempo, tenta matar os raptores para manter a localização do oásis em segredo. Essa missão também é assumida por Furiosa, que, mesmo maltratada pelos sequestradores, mantém um silêncio absoluto, não revelando qualquer informação sobre sua origem.

Este é talvez o principal tema da série Mad Max: como manter a humanidade em meio ao horror. A preservação dessa humanidade exige defesa a todo custo, mesmo que com violência e sacrifício. Furiosa, assumindo seu silêncio como armadura, escapa e passa a nutrir o desejo de retornar à sua terra e ao seu povo, e vingar-se do chefe de seus raptores, o autointitulado Senhor da Guerra Dementus (Chris Hemsworth). 

Nesta jornada dupla da protagonista, o filme não fará um julgamento moral; pelo contrário, explora como a necessidade de preservar a humanidade coexiste com a necessidade de reparação pelo mal inimaginável que ela sofreu. Em um mundo regido pela violência, esta não será recusada, e não há ilusões quanto a isso.A chave do filme está na síntese entre a continuidade da vida e a  manutenção da vingança, expressa brilhantemente em uma única imagem relacionada ao destino de Dementus. Sem spoilers, cabe ao espectador descobrir isso por si só.

Como manter a humanidade frente ao horror? Furiosa não escapa à complexidade da questão.

Furiosa não possui o mesmo fascínio que seu antecessor. Enquanto Estrada da Fúria possuía o trunfo de capturar o espectador através do descortinamento de um modo completamente novo, com uma ação genuinamente amalucada e uma iconografia de puro gozo – como os veículos apocalípticos, mutantes trapezistas e o rockeiro com a guitarra que cuspia fogo – o novo filme  não acrescenta nada verdadeiramente novo a esse conjunto de elementos. Sendo o  seu universo já assimilado, Miller opta por não inflar seu universo com novas pirotecnias para replicar o impacto, mas concentra-se na execução de uma carpintaria bem definida. 

Na ação, “Furiosa” mantém o mesmo rigor estilístico de Miller, mas de maneira mais depurada e contemplativa. O filme é repleto de planos abertos, frequentemente vistos de um ponto de vista elevado, fixos ou descrevendo movimentos panorâmicos. Esses planos mostram a extensão do caminho e a ação dos personagens como pequenas formigas em uma vasta paisagem. O espectador contempla o caos como se observasse atores em um palco, tomando conhecimento da trajetória dos envolvidos e antevendo os seus destinos através do espaço porvir. Quando um corte cirúrgico catapulta o ponto de vista para o centro da ação, ela o faz sem desorientar o espectador.

Furiosa é um primoroso retorno ao mundo de Mad Max, um tipo de filme de ação raramente encontrado hoje em dia nos grandes lançamentos de Hollywood. No entanto, ao final, fica a sensação de que ele não avança a mítica do universo. É necessário elogiar a escolha de George Miller, especialmente em uma época em que o cinema é dominado por grandes franquias como Marvel, DC e Star Wars, onde cada filme funciona como parte de um vasto mosaico, exigindo que o espectador assista a vários filmes para compreender a narrativa completa. Miller segue o caminho oposto, contentando-se em fazer um excelente filme. Por vezes, caminhar para trás é mais interessante do que avançar sem propósito. Aguardemos seu próximo passo.

 

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