Planeta dos Macacos: O Reinado
Levando a palavra adiante
Por Yuri Lins | 09.05.2024 (quinta-feira)
Em Planeta dos macacos: o reinado (EUA, 2024), uma cena encapsula toda a sua força narrativa. O protagonista, o símio Noa (Owen Teague), sobrevive a um ataque brutal ao seu clã e embarca em uma jornada arriscada para resgatar os sobreviventes que foram aprisionados. É nesse momento de perigo que Noa encontra o velho orangotango Raka (Peter Macon), guardião da pira onde os ossos de César (Andy Serkis) são consumidos ao longo das décadas. Dos filmes anteriores da série, sabemos que César foi o pioneiro entre os macacos a receber o dom e a sina da racionalidade. Mais do que liderar seus pares na guerra contra os humanos, César se empenhou em buscar maneiras de estabelecer a paz entre as espécies. Nesse momento, a atenção de Noa é subitamente capturada por algo completamente novo para ele: um amálgama de páginas encardidas e repletas de símbolos misteriosos. Raka revela que se trata de um livro, um antigo meio de registrar conhecimento, onde cada símbolo gravado carrega consigo um significado. Para o orangotango, preservar a palavra é uma missão de vida, e é sobre isso que o filme irá abordar: a importância da palavra, da comunicação e de todos os seus poderes e vulnerabilidades.
A história se desenrola gerações além do tempo de César; as cicatrizes da guerra foram gradativamente se aprofundando ao longo dos anos, fundindo-se com a paisagem até formar um palimpsesto. A vegetação agora domina os antigos arranha-céus; a sociedade símia se fragmentou em clãs e grupos, cada um com seus próprios mitos, éticas e leis distintas. Os humanos se tornaram raros avistamentos; os sobreviventes de sua antiga civilização se escondem nos subterrâneos, enquanto aqueles que habitam a superfície lembram homens pré-históricos, onde a linguagem articulada e uma língua comum já não existem. Um silêncio profundo separa cada indivíduo e cada grupo, como uma barreira intransponível entre eles. A palavra de César, uma vez uma fonte de unificação, agora se torna a insígnia do reino do monarca Proximus (Kevin Durand), que, autoproclamando-se seu sucessor, a utiliza para justificar sua sanha expansionista.
Noa continua sua jornada e, além de contar com a ajuda de Raka, recebe também a companhia da humana Mae (Freya Allan). Ela segue os passos dos dois símios como um animal acuado, sempre alguns passos atrás, espreitando na vegetação, aproximando-se apenas quando a fome e o frio se tornam insuportáveis. No início, Noa a rejeita, mas sua aproximação com ela se torna o meio pelo qual ele absorve a palavra de César, seus ensinamentos transmitidos através da pedagogia de Raka. Mae, por sua vez, permanece em silêncio como forma de proteção. O momento em que sua voz é finalmente revelada também marca sua abertura para aquele outro indivíduo que lhe é estranho.
Num mundo completamente estilhaçado, onde as trocas entre as sociedades quase desapareceram, cada grupo adota uma palavra própria, uma lei que busca conferir sentido ao seu mundo e estabelecer fronteiras. No entanto, à medida que Noa avança em sua jornada, ele percebe a vastidão do mundo para além das barreiras impostas por sua própria comunidade, tanto físicas quanto morais. Através de Raka, que canaliza o legado de César, Noa compreende que o mundo não pode ser subjugado por uma única norma e que uma palavra só pode verdadeiramente abraçar a complexidade do mundo se renunciar à vontade de domínio.
A jornada de Noa em direção ao cárcere de seus companheiros é prenunciada pela presença de Mae no grupo. Mae, perseguida pelos seguidores de Próximus, é capturada junto com os outros e levada ao reino. Próximus ergue suas edificações ao redor de um silo, uma relíquia da era da guerra humana. Apesar de utilizar todo o seu poder para derrubar os muros, ele se vê incapaz de penetrá-los. Sua esperança reside em Mae, acreditando que ela possui o conhecimento necessário para abrir as portas do silo, concedendo-lhe acesso às armas e outros recursos guardados ali.
Próximus apropria-se da palavra de César como uma espécie de mito para orientar seu reino. Enquanto a palavra de César originalmente buscava não subjugar o mundo, mas sim encontrar um terreno comum onde as diferenças pudessem coexistir, o ímpeto do monarca está justamente em fundamentar a violência de seu impulso colonial, promovendo a unificação pela força em vez da aceitação da alteridade. Além disso, Próximus traça uma genealogia do nome “César”, remontando aos tempos dos imperadores romanos, quando esse nome não era apenas o de um indivíduo, mas sim um título transmitido de soberano a soberano. Dessa forma, o filme também retrata como qualquer ideologia, seja religiosa ou política, pode ser manipulada e corrompida para servir aos interesses dos tiranos. César, assim como os profetas em nosso mundo, não está imune a essa dinâmica moldada no curso do tempo e da história.
Ainda que os filmes anteriores, nos quais o subtexto cristão se manifestava na figura messiânica de César, aquele que libertou os aprisionados e se sacrificou para salvá-los, sejam símios ou humanos, esta nova incursão na franquia aprofunda as complexidades do tema. O filme é religioso, porém indo ao radical do termo, o verbo latino “religare”, a busca por reconectar os laços com os outros e com o divino. Num mundo fragmentado, os seres anseiam pela reconexão com os seus, mas essa busca traz consigo o potencial para o horror. Noa, o novo protagonista, não é retratado como um messias, mas sim como uma espécie de apóstolo recém-convertido. Sua jornada é resgatar o significado original da palavra e constantemente recordar a encruzilhada do mundo: entre buscar o terreno comum da convivência ou instaurar a guerra, que está sempre à espreita como um destino trágico.
Nos filmes anteriores da franquia, a própria necessidade de ostentar os efeitos visuais de ponta permitia que um cineasta talentoso como Matt Reeves pudesse fazer com que os blockbusters pirotécnicos reaprendessem a contemplar um rosto; seu trabalho consistiu em demonstrar as possibilidades da técnica ao compor, com realismo e minúcia de carpinteiro, as emoções na face e nos gestos dos seres criados digitalmente. Sob a direção de Wes Ball, o novo filme mantém essa premissa, mas seu trunfo está na extrema habilidade em trabalhar os gestos simbólicos e evocar ideias. Ao longo de toda a trama, certos objetos ou frases retornam constantemente, tendo seus significados readequados progressivamente para desenvolver conceitos complexos. Ball não reinventa a roda; ao contrário, ele se vale dos elementos mais simples da narrativa clássica para alcançar esse objetivo.
Há um exemplo fundamental: em tempos passados, durante a era de César, existia uma ordem que unia seus seguidores em torno de um propósito comum. Cada membro dessa ordem carregava consigo uma insígnia presa a um colar. Com o passar do tempo, a ordem se desfez, deixando para o orangotango Raka ser o último acólito restante. Ao conhecer Noa, Raka passa para ele este colar, reitera-o como um chamado à preservação da ideologia. Conforme a história avança, esse mesmo objeto é transmitido para outros personagens, adquirindo novos significados ao longo do caminho. Embora a abordagem possa parecer simples e básica, comum a qualquer filme narrativo, o empenho por trás dessas escolhas ganha relevo aos olhos, pois se alinha com as ideias essenciais do drama desenvolvido. Cada reintrodução desses elementos serve como um lembrete contínuo da importância de manter a integridade da visão de César sobre a união entre seres diferentes.
Volto a outra cena , ainda no início, e que retornará em seu ato final. Noa está entre as ruínas de um observatório abandonado, onde um telescópio coberto pela vegetação captura sua atenção. Embora não reconheça o objeto, seus olhos são inevitavelmente atraídos para o visor do aparelho. O filme não retrata a miríade de estrelas e galáxias que ele contempla através da lente; em vez disso, concentra-se em suas reações, revelando seu olhar sendo tomado por uma fascinação diante de algo que escapa à capacidade de seu léxico expressar. Logo em seguida, Mae também se aproxima e espreita através do dispositivo. Nesse momento, os dois não compartilham qualquer intimidade; Noa mal compreende Mae como um ser consciente, no entanto, isso não o impede de se maravilhar ao ver o rosto dela também se iluminar com o mesmo fascínio.
Noa e Mae, por força das circunstâncias, estão destinados a se tornarem aliados na aventura que se desdobra. No entanto, o peso de seus respectivos mundos, com suas exigências e obrigações, junto com as cicatrizes do passado da guerra entre símios e humanos, os conduzirão por estradas distintas. No entanto, num momento em que ambos compartilham a mesma visão de um mundo além, a palavra de César assume dimensões cósmicas. Não é porque a imagem obliterada do universo reflita a insignificância das disputas em face da vastidão do espaço, mas sim porque revela que símios e humanos, cavalos e águias, absolutamente todos os seres, habitam a mesma terra sob o mesmo céu.
Planeta dos macacos: o reinado marca um retorno sólido à franquia, mostrando que as possibilidades deste universo não se limitaram ao término da jornada de César. O filme reposiciona os temas clássicos, os conflitos entre humanos e símios, e entre os próprios símios, mantendo a ambiguidade dos personagens. Na sua atmosfera, paira constantemente a sensação de um passado que pode retornar, um conflito que pode tomar proporções de guerra novamente. No entanto, o filme também mostra, nos gestos minuciosos de seus personagens e na individualidade de suas almas, o desejo de que tudo seja diferente. Se uma palavra pode mover o mundo, é porque move indivíduos. Resta saber se esses indivíduos conseguirão influenciar o destino de suas coletividades.Aguardemos ansiosamente os próximos capítulos.
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