Grande Sertão
Teledramaturgia em função de um texto sagrado.
Por Luiz Joaquim | 06.06.2024 (quinta-feira)
Duas autoridades do cinema brasileiro contemporâneo, Guel Arraes e Jorge Furtado, que também mudaram a cara da teledramaturgia nos anos 1980, assumiram o desafio, feito a si próprios, de adaptar aos dias atuais aquele que é uma das (ou ‘a’) mais sagrada literatura escrita nessa terra chamada Brasil.
Da obra Grande sertão: veredas, do deus João Guimarães Rosa, surge nos cinemas – a partir de 6 de junho e, no Recife, abrindo o 28º Cine-PE na mesma data – o filme Grande sertão (Bra., 2024). Protagonizando: Caio Blat como Riobaldo e Luísa Arraes como Diadorim. Ambos trazem do teatro, em peça lançada em 2017 baseada no mesmo livro e sob a batuta de Bia Lessa, a energia à tela que empregaram nos palcos.
E, os primeiros minutos de Grande sertão – o filme – são problemáticos exatamente pela estrutura teatral, quando temos Riobaldo num cárcere contando sua vida em retrospecto a um ouvinte fora do quadro (Quelemém? Nós?) o que viveu e desviveu desde o dia em que conheceu o menino Diadorim e, ali, amanheceu a sua aurora.
Blat, ator tarimbado e preparado, parece não ter muito como escapar dessa armadilha de, sentado solitariamente numa cadeira, dar a fala de um texto em voz empostada (tal como no teatro) para um punhado de câmeras que o circundam, ora estáticas, ora em movimento contínuo.
Para nossa tranquilidade e em benefício do ator, o filme logo o coloca na ação ao lado de vasto elenco ainda que irregular, é verdade, num desnível curioso de ver num mesmo filme.
São nesses momentos, quando contracena nas ações, que Blat consegue dar corpo e carne ao seu Riobaldo cinematográfico. Luísa Arraes também está lá, presente, mas não tão bem vestida (e não estamos falando de vestimentas, de figurino) em sua Diadorim.
Luísa, ao contrário de Blat, soa como uma atriz que busca seu personagem. Está ao lado dele (do personagem) mas não nele. Mariana Nunes, como a Otacília por quem Riobaldo se envolve, talvez esteja em seu momento mais frágil da carreira, combinando aqui gestos e expressões que não ajudam (pelo contrário) a emprestar o peso que lhe cabe, enquanto Rodrigo Lombardi – como Joca Ramiro, o líder do bando de Diadorim -, este sim, entregando o que se espera. Sem excessos e com precisão discreta, objetiva.
E já que enveredamos pela paisagem das interpretações, claro está, neste Grande sertão, que dois nomes merecem reverência aqui, por elevarem o espírito dramatúrgico da produção a um nível de admiração: são Eduardo Sterblitch, como Hermógenes, o mancomunado com cramulhão, e Luís Miranda como Zé Bebelo, o chefe da polícia com pretensões políticas (no livro, um fazendeiro, originalmente).
O Hermógenes do Fred Mercury Prateado, ops, do Sterblitch ganhou aqui uma composição cênica, talvez a maior entre todas no filme, que nos faz acreditar no que está em seu entorno. O ator oferece nuances na composição de maldades do Hermógenes que dificilmente poderá se desvencilhar quando pensarmos no personagem. O que só ressalta o tanto de bom que está por vir desse artista numa carreira que está sabendo construir. Em dezembro o veremos em O auto da compadecida 2.
Já Miranda tem um belo terreno aplainado desse sua aparição em Bicho de sete cabeças, mas ainda carente de protagonismo (com exceções raras) a altura de seu talento. Como Zé Bebelo, cresce na tela de modo a sombrear quem está ao seu redor. Miranda sabe gritar sem gritar (e Bebelo grita o tempo todo em cena). Em outras palavras, isso é Atuar, assim, com ‘A’ maiúsculo mesmo.
O FILME – Para quem ainda não leu nada a respeito do que foi inventado para este Grande sertão, entenda que temos aqui uma adequação da obra de Guimarães Rosa para os dias de hoje, sendo o ‘Grande sertão’ o nome de uma comunidade periférica carioquíssima dominada pelo tráfico, com polícia e bandido se matando e bala perdida atingindo criança.
É nessa guerra que Riobaldo, um professor da comunidade, reencontra o amigo Diadorim que certa vez, na infância, lhe tocou a mão e o seu corpo tremeu. Pelo amigo, o pacato Riobado pega em armas e luta por uma guerra que não é exatamente a sua.
A sua é interna, na confusão de sentimentos pelo amigo cuja identidade sempre lhe foi misteriosa, perturbando suas ideias e o atraindo ao mesmo tempo. O que faz dele um desassossegado da alma, em conflito pela auto repressão em amar um outro que acredita ser também homem.
Nesse ponto, Grande sertão, o filme, soube aproveitar o que há de atual nessa discussão boba sobre o amor seguir regras. Afinal, como bem dizia o deus Guimarães Rosa há quase 70 anos: ”amor é a gente querendo achar o que é da gente”. E, nesse sentido, este novo Guel Arraes pode encontrar sua turma (jovem) disposta a adotá-lo pelo auto reconhecimento nesta obra prima do amor impossível da literatura brasileira.
Vale também lembrar que Guel tem, entre tantos feitos, uma pequena revolução televisiva/cinematográfica feita há 24 anos chamada O auto da compadecida, nascido a partir de outro texto não menos criativo, vindo da mente de Ariano Suassuna.
E… Grande sertão terá essa mesma força? Talvez, mas certamente não entrará para o imaginário do povo brasileiro, querendo uma sequência, mesmo que ela só chegue em dezembro de 2048.
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