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1 Comentário

  • Camilo de Lélis Lima de Souza

    Acabei de me deliciar vendo esse filme espetacular, o qual suscita a necessidade de a educação formal primar pelo desenvolvimento do pensamento crítico em todos os ambientes.

  • Críticas

    Testamento

    Legado de Denys Arcand é satírico e triste

    Por Ivonete Pinto | 26.06.2024 (quarta-feira)

    Quem tem mais de 40 anos deve lembrar-se do impacto que causou O declínio do império americano (1986), Jesus de Montreal (1989) e, mais tarde, As invasões bárbaras (2003), Oscar de Filme Estrangeiro. Todos reconhecidos como legítimos filmes para pensar. Saía-se do cinema para discutir os problemas do mundo, a partir do ponto de observação particular de seu diretor e roteirista Denys Arcand, a província canadense de Quebec.   

    O ponto de observação de Arcand não mudou, mas o jeito de “discutir” agora é outro.  Embora o seu mais recente filme, Testamento (2023), consiga a proeza de ser lançado em algumas salas de cinema por aqui e mesmo que suas ideias continuem sendo provocativas e levem à reflexão, não há mais clima. Não há mais ambiente físico e propenso ao debate, pelo menos não no mesmo nível de décadas atrás.

    Arcand  segue sendo o sujeito meio rabugento que desaprova o modo de vida canadense, os sucessivos governos, a lógica capitalista, o sistema de saúde que sucumbiu ao liberalismo e que deixa a todos desemparados. O diretor  o faz por meio de personagens intelectuais, pessimistas, com extremo senso crítico. Portanto, personagens coerentes que poderiam estar em um filme de Woody Allen. Acontece que, pelo grau de crítica social, estão mais para o britânico Ken Loach e para o francês Robert Guédiguian e sua Marselha. Arcand se diferencia destes dois por carregar as tintas no humor de corte satírico.

    Denys Arcand volta à crítica social: Em “Testamento”, o diretor canadense questiona os rumos do mundo contemporâneo, com humor ácido e rabugento.

    Em Testamento, o diretor também aumenta seu grau de desconforto com o mundo. Através do protagonista Jean-Michel Bouchard (Rémy Girard), um arquivista que trabalha na biblioteca nacional, expõe seu desacordo com as mudanças na sociedade. Utilizando a sátira como meio  e uma “casa de repouso” para idosos como cenário. Difícil até categorizar que tipo de local é este, pois não há nada similar no Brasil. Uma instituição onde pessoas com mais de 60 anos (presume-se), vivem em apartamentos bastante confortáveis, com estrutura dirigida pelo governo. Estrutura que inclui sala de descanso (que se transforma em sala de games porque o governo descobriu que seria bom para eles), recepção e uma solene administradora/gerente. Tudo na mais perfeita ordem, exceto pela entrada em cena de um grupo de ativistas que denuncia haver no belo prédio uma pintura que deve ser removida. 

    Ativistas ignorantes – O filme abre com um passeio de câmera pelo enorme mural onde colonizadores espanhóis aparecem ao lado de indígenas. Algo na linha do “A primeira missa no Brasil”, quadro de Victor Meirelles. A discórdia dos ativistas defensores das “primeiras nações” é que os indígenas aparecem… nus. O problema não é de pudicismo, eles argumentam que se trata de uma relação desigual: os exploradores espanhóis vestem-se finamente com veludo e tudo, enquanto aos indígenas restam umas penas para tapar suas vergonhas.

    O absurdo do discurso das duas jovens ativistas que centralizam o debate ─ uma delas usando um adereço indígena de lojinha ─, dá o tom da sátira que Arcand propõe ao longo do filme. Todas as situações que servem para expor o mundo atual, desde a linguagem neutra, até o modo de vida saudável que acaba por matar um dos moradores da instituição, estão ali como exagero. Parece que estamos vendo algum vídeo do Porta dos Fundos. Arcand diz que se inspirou em um episódio  que assistiu em um museu de Nova York, onde um grupo manifestava-se contra a existência no museu de uma pintura  mostrando exploradores holandeses em um encontro com nativos americanos. 

    Ativismo e debates acalorados em tempos de polarização: O filme satiriza a cultura do cancelamento, a linguagem neutra e o ativismo identitário, gerando reflexões sobre o diálogo e a tolerância.

    Arcand adapta a situação recorrendo à técnica da sátira, que surgiu na Grécia Antiga para expressar crítica social e política, pegando pesado na ironia. Como na cena do desespero da esposa que perde o marido saudável e vocifera contra a inutilidade da prática de esportes, da alimentação à base de orgânicos, etc. O texto e a performance da atriz estão um semitom acima daquele necessário para provocar o riso. Porém,  esse é o estilo do filme, que empilha assuntos do mundo contemporâneo para espinafrar. Arcand não poupa “Todas, todos, todes”, produzindo  diálogos hilários, assim como a constatação de que os jovens ativistas, a gerente da instituição e os políticos são todes analfabetes. Ao menos muito ignorantes.  

    Talvez aí exista um problema: é fácil atacar a ignorância  do mundo atual, mas é gesto pífio cobrar que os ativistas, (ignorantes por serem jovens?) representem uma espécie de doença do século. Certo que o apetite por cancelamentos tem chegado às raias da bizarrice, do inacreditável, por conta da ignorância (às vezes burrice), entretanto também é inegável que um movimento de âmbito mundial está em curso e não vai parar. Não é uma moda. Algumas estátuas devem ser derrubadas mesmo, pois que não se justificam como homenagens. Não perceber a validade deste movimento é perder o trem da história. Já cancelar Shakespeare e Brecht, citados no filme, é questão de deficiência intelectual aguda. Mas  Testamento, ao juntar todas as deturpações das pautas atuais, faz parecer que elas não são justas. Ou que nem mesmo tenham origem em algo que não pode mais ser defendido.

    Em todo caso, é bem-vinda uma obra que questiona os desvios de rota de algo que é positivo por princípio, contudo equivocado quando sofre deformação (por ignorância ou burrice, que seja). E se o questionamento vem de alguém da esquerda, como Arcand, tanto melhor. Claro que a direita é contra o que vai em direção ao politicamente correto. Por isso, sempre vale lembrar uma definição de Gilles Deleuze sobre a diferença entre a esquerda e a direita. Para ele,  a esquerda pensa o mundo a partir do outro, enquanto a direita pensa o mundo a partir de si mesmo. Arcand não simplifica, demonstra a complexidade de posições à direita e à esquerda usando a ironia que se instala na arena de um governo como o canadense, esquisito em sua monarquia constitucional. E mais complicado ainda porque o filme se passa no Québec, a parte francófona do Canadá, que algumas vezes quis se tornar independente. Suas nações indígenas possuem representação política justamente por causa de ativistas. Os que se transformam em políticos, como em qualquer lugar, mesmo sob pressão fazem o jogo que lhes beneficia.

    Arcand expõe as mazelas do sistema de saúde, da política e da vida em sociedade, com personagens que representam diferentes gerações e pontos de vista.

    O jocoso é que a classe política satirizada em Testamento é a que menos parece exagerada. São representações realistas até. Isto porque políticos, aqui e acolá, na vida real,  costumam atuar no registro do estereótipo. No filme, uma deputada jovem e inflamada, discursa na assembleia quebequense em favor dos ativistas que querem a retirada/apagamento/queima da pintura que enaltece o colonizador e que insulta as “primeiras nações”. [spoiler] Quando descobrem que se tratava de um pintor do século XIX, Jean-Joseph D’Aubigny (pintor inventado para o filme), surge uma nova denúncia, agora contra a administração da casa de repouso que mandou destruir a obra. A mesma deputada profere  falas coléricas na defesa de ideias opostas.

    Rémy Girard, que esteve à frente de outros filmes de Arcand, faz o arquivista septuagenário que vive na casa de repouso. Discreto, prepara-se para “desaparecer sem que ninguém perceba”, afinal, como diz, se a Rússia invade a Ucrânia, ele não pode fazer nada, está muito velho. No entanto, não deixa de ficar indignado com o desfecho sobre o mural,  a incompreensão quanto à linguagem neutra, as feministas rudes,  as tatuagens… É Arcand no corpo do personagem, invocando mais uma vez a decadência de um império ocidental, de uma cultura que agoniza desde a década de 1980. Se o diretor vivesse nas respectivas  épocas de Balzac e Dostoievski, acharia o ó que  escrevessem por encomenda. 

    Nesta semana, no dia 25 de junho, Denys Arcand completou 83 anos. Caso este não seja de fato seu derradeiro testamento, que siga denunciando o que lhe parece errado, mesmo que o ambiente para o debate de matiz intelectual não mais lhe favoreça.

     

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