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Críticas

Entrevista com o Demônio

Muito além do terror, um tratado divertido e assustador sobre se perder em máquinas da vaidade e ganância

Por Luiz Joaquim | 02.07.2024 (terça-feira)

Poucos filmes são tão felizes em serem explícitos e precisos na síntese de seu título quanto ao que o espectador pode, literalmente, aguardar do que está por vir. Em outras palavras, em Entrevista com o demônio (Late Night with the Devil, Austra./EUA/ Emir.Arab, 2024) vocês verão o capeta sendo entrevistado, ao vivo, num programa de tevê no ano de 1977. Mas… como? Bem… como se não bastasse, o título é também provocador, instigante – ao menos aos entusiastas dos filmes de horror. 

Só que, para estes, aqui vai uma informação valiosa e que, aparentemente, tem pego de calças curtas os desejosos dos sustos tradicionais e dos efeitos especiais sofisticados para obras do terror: Entrevista com o Demônio está mais para uma brincadeira (séria) com este tão pop gênero do cinema do que para uma obra que quer apenas provocar o medo pelo desconhecido. 

“Brincadeira séria” porque estamos falando das consequências pessoais e sociais de um programa de entrevista ao estilo do icônico David Letterman, que comandou o Late night no canal norte-americano NBC, entre 1982 e 1993, e depois o Late show, na CBS, até 2015. O programa de Letterman, na verdade, não é o melhor exemplo comparativo, considerando que em Entrevista… o apelo para ser um campeão de audiência desconhece os limites do bom senso. 

No filme, em sua introdução, letreiros avisam que o espectador irá acompanhar, na íntegra, uma específica edição do Corujão (no original, Night Owls). Esta tal edição do talk-show foi levada ao ar pela tevê na noite do Halloween (outubro) de 1977. E vemos, no filme, não apenas aquilo que foi levado ao ar, mas também um material de arquivo dos bastidores daquela fatídica noite.

Convidados da histórica edição do talk-show apresentada

Antes de vermos propriamente a histórica edição do programa, somos lembrados, pela estética de um documentário, que no final dos 1960, início dos 1970 o esoterismo, seitas e o interesse por fenômenos sobrenaturais aumentou, com a tevê testemunhando e amplificando a curiosidade por tudo isso. 

Ao mesmo tempo, conhecemos um pouco da carreira de Jack Delroy (David Dastmalchian) que, deixando uma trajetória como apresentador de rádio, iniciou em 1971 uma meteórica carreira como o apresentador de sucesso do Corujão. Sua alta popularidade despencou cinco anos depois, logo após o falecimento de sua amada esposa. 

Até que, na edição que poderia promover sua reviravolta e fazê-lo cair nas graças do “Ibope”, a produção do programa e o próprio Jack começam a perder o controle da situação.

Provocando o sobrenatural ao vivo, os sinais vão sendo dados para que aquilo não seja levado adiante. Mas há muito em jogo naquela noite, não apenas o futuro do programa e da tevê, mas também da carreira do vaidoso Jack.

Entrevista com o demônio está na categoria dos bons filmes que desafiam seus marqueteiros uma vez que, não mais do que dissemos aqui sobre o seu enredo pode ser revelado sob pena de o tão bem desenvolvido e crescente impacto do roteiro, até a chegada de seu clímax, serem diluídos em expectativas que palavras soltas facilmente estragariam. 

A propósito, seria lamentável se os assessores de comunicação arremessassem o filme a influencers para promovê-lo sem a devida observação prévia sobre o que o videasta falante poderá revelar dessa tão bem amarrada historinha. A essa altura (cinco dias após a sessão cabine para a mídia) é de se perguntar se empregamos o tempo verbal errado na oração anterior.

 O único senão de Entrevista… fica pelas imagens de bastidores. O found-footage que nos apresenta o que acontece no estúdio do programa nos intervalos comerciais é descaradamente inadequado ao que se espera de um material como este produzido em 1977, o que esteticamente destoa de todo o resto deste falso documentário.

Jack (Dastmalchian) conversa com seu produtor em um dos intervalos do ‘Corujão’

Mas, esmiuçando o que escrevemos acima, o advérbio ‘descarademente’ é auto-explicativo aqui. O filme, dirigido e roteirizado pelos irmãos australianos Cameron e Colin Cairnes, se leva a sério até certo ponto. Não há nele uma auto-exigência de nos convencer de que estamos diante de um autêntico found-footage perdido e reencontrado para finalmente explicar o episódio inexplicado – tal qual o icônico e excelente A bruxa de Blair (1999). 

Entrevista…, como já dissemos, está interessado em algo maior, além de nos arrepiar com o que nos mostra na tela – tela, à propósito, que não abandona nunca a proporção 4:3 e a textura visual própria das tevês nos 1970. 

Entrevista…  quer, principalmente, nos provocar sobre as consequências do que buscamos pela ganância. Escancara, pela dor na carne, a expiação de gente assim, que segue esse caminho. E a fábrica de vaidades “tevê” é um prato cheio para o assunto. Falando assim, de modo professoral, pode soar bobo, e é aí que a brincadeira séria da produção australiana dá o seu pulo do gato. Isto porque ninguém fica tranquilo no cinema enquanto Jack sofre o que sofre por ter ultrapassado a linha do bom senso em busca do sucesso. 

Sua frase final no filme, dita em estado catatônico – “Do sonho, acordar” – é como um aviso aos hipnotizados espectadores pelo entretenimento oco e desmedido de verdades falsas mediadas por uma tela patrocinada.

E falando sobre fábrica de vaidades patrocinadas, será que teremos uma Entrevista com o demônio 2 lançado em 2071, ambientado em 2024, utilizando não a tevê mas as redes sociais. 

Já estamos curiosos.

 

EM TEMPO – Uma vez que falamos do trabalho dos marqueteiros para um obra como Entrevista com o demônio, resolvemos copiar, abaixo, algumas curiosidades incluídas no material de divulgação do filme sobre a produção:

David Dastmalchian – O ator é figurinha carimbada em sucessos recentes de diretores renomados, como Christopher Nolan e Denis Villeneuve. Em Entrevista com o demônio , o artista dá vida a Jack Delroy, um apresentador de TV que vê seu programa perdendo audiência enquanto lida com problemas do passado, como a morte de sua esposa, e também luta pelo próprio sucesso para consolidar seu nome no entretenimento. O programa de Halloween, que é apresentado no filme, vai ao ar no mês seguinte ao fato que mais assombra seus pensamentos: a morte da sua amada. O ator, inclusive, é um grande fã e figurinha carimbada em muitos filmes de terror. Ele também apresenta um podcast entrevistando grandes nomes do gênero, como Mike Flanagan, deitado em um caixão: o Grave Conversation Show.

Críticas positivas – O filme estreou no Festival SXSW e conquistou a crítica de imediato. Com uma pontuação de 97% no site Rotten Tomatoes, Entrevista com o demônio é sucesso de crítica. Para o jornal The Guardian, a jornalista Wendy Ide escreveu que o longa é “inteligente, cínico e às vezes diabolicamente engraçado, o longa oferece uma quebra da ideia já definida do gênero possessão demoníaca”; Alissa Wilkinson, ao The New York Times, disse que o filme é “um horror elegante e eficaz de forma rara. Enquanto eu assistia, no meio da exibição, me perguntava se estava assistindo (vendo o programa) na minha TV”; E Dennis Harvey, da Variety, disse que “o novo filme da dupla de diretores aumenta o nível do talento deles em trazer reviravoltas inovadoras para um gênero já familiarizado”.

Ambiente dos anos 1970 – A trama se passa no Halloween de 77, em que a tentativa de demonstração de poderes paranormais para a audiência do programa sai do controle. O filme entrega o ambiente da época e faz o espectador se questionar se realmente não está assistindo algo que aconteceu décadas passadas. Programas de auditórios são conhecidos por darem espaço para apresentações paranormais, algo que sempre fascinou o público, além de segurar a audiência ao gerar curiosidade e dúvida. Isso é algo que pode ser aplicado tanto nos Estados Unidos, como no Brasil ou na Austrália. Logo, o sentimento de “Eu já vi isso que estou assistindo” pode ser recorrente para os espectadores.

Inspirações em grandes diretores – A dupla de diretores indica que, para Entrevista com o demônio , inspiraram-se em filmes de cineastas renomados como “O Rei da Comédia”, de Martin Scorsese, e “Rede de Intrigas”, de Sidney Lumet.

The Don Lane Show – Colin Cairnes e Cameron Cairnes contam que o programa fictício “Night Owl” e o personagem Jack Delroy tem forte inspiração em um dos talk shows mais famosos da Austrália (país natal da dupla). No programa, o apresentador Don Lane, que era muito curioso sobre temas sobrenaturais, apresentava caça-fantasmas e médiuns. Os diretores de Entrevista com o demônio ficavam acordados até tarde quando eram mais jovens para assistir ao “The Don Lane Show”.

Possessão demoníaca – O gênero do terror é bem amplo e apresenta uma variedade de obras diferentes, mas uma das mais famosas é a possessão e o exorcismo, alcançando e conquistando uma audiência considerável. Em Entrevista com o demônio , o tema é o norte da narrativa, porém não é apenas isso. O filme consegue criar tensão e uma atmosfera de apreensão sem precisar utilizar jump scare ou fórmulas mais tradicionais já conhecidas do gênero. Os diretores buscam utilizar a narrativa a favor deles, trazendo histórias da época, como sociedades secretas, e reviravoltas, construindo lentamente uma sensação de horror.

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