O Sequestro do Papa
Marco Bellocchio entra em sua fase idiossincrática
Por Humberto Silva | 07.07.2024 (domingo)
Octogenário, Marco Bellocchio ocupa incontestável lugar de proa na história do vigoroso cinema italiano; em decorrência, do cinema mundial.
Alguns diretores de cinema longevos e profícuos são idiossincráticos: os derradeiros filmes de Godard me passam a sensação de provocação com gracejos que exibem imagens inadvertidamente levadas a sério (Filme Socialismo, tomado a esmo, poderia vir com a legenda: “antes de ver esse filme, você sabe o que penso sobre…”).
Tanto quanto Godard, os derradeiros de Kurosawa, e agora o de Coppola com sua Megalopolis, soam para mim como esquisitices de espíritos que têm fortemente presentes o que representam na história do mundo de espetáculos…
Esquisitos, excêntricos, na França, no Japão, nos USA, sabem o que representa a marca Godard; a marca Kurosawa; a marca Coppola…
Bellocchio agora se inclui nessa lista ao “ressuscitar” o affair Mortara em seu recente O sequestro do Papa.
Ao tomar conhecimento e escrever sobre o filme, meu sentimento sincero: que diabo Bellocchio quer – ou o que o estimulou a realizar – com uma encrenca do Novecento envolvendo o Papa (Pio IX), o Estado, o Risorgimento e um gueto judaico?
Toco então num ponto para mim crucial. O sentido de um filme, digamos “histórico”, fora de seu meio político, cultural, social, religioso. O affair Mortara tem enorme relevo para as conflituosas relações entre judeus e cristãos (católicos) e para o contexto de unificação italiana no Risorgimento.
Mas, para quem está distante das minudências históricas do contexto, como desavisadamente compreender O sequestro do Papa? Estabeleço um paralelo: um italiano hoje diante da relação entre Maçonaria e Igreja Católica na famosa Questão Religiosa no Brasil, no final do Segundo Império.
Nós aqui no Brasil, dos livros de história no ensino médio, sabemos bem o que foi, pouco depois do affair Mortara, a famosa Questão Religiosa.
De modo que, para mim, Bellocchio assina a direção de um filme no qual não tenho o menor interesse na “história contada”. Sim, pois, para quem nada sabe sobre o affair Mortara, basta um google (este, entendo, o profundo e definitivo sentido de um spoiler). Mas me encafifa o motivo para tê-la filmado.
Conjecturo, óbvio, que o assunto – peso então a gravidade – não lhe surgiu de uma noite insone: “agora, octogenário, de repente me deu vontade de filmar o affair Mortara”.
Daí então o dado mais relevante de O sequestro do Papa. Atenção aos créditos finais. Quem assina a consultoria histórica é Pina Totaro, filósofa especialista em Spinoza. Portanto, nas relações inamistosas entre judeus, católicos, cristãos novos…
Em destaque nos créditos, Pina Totaro, e não propriamente Bellocchio, responde pelas caracterizações que muito provavelmente não agradam judeus e católicos. Ela igualmente responde pelas “liberdades poéticas” intimistas em assunto tão sensível e controverso.
Para um espectador incauto, a conversão ao credo católico de um judeu raptado aos seis anos, Edgardo Mortara, tem o ar de melodrama de sessão da tarde.
O sequestro do Papa nem de raspão toca na relação entre os guetos judaicos e os Estados Papais antes da unificação do Reino da Itália. Igualmente não faz menção ao que foi o Santo Ofício no Novecento e o que legislava o Direito Canônico sobre batismo e judaísmo.
Sim, claro, até onde minha capacidade de apreensão dá conta, a produção de O sequestro do Papa é bem cuidada. Luz, cenas externas, internas, figurinos, locações, cenários… remetem ao clima que, creio, pode-se esperar numa reconstituição de época.
Exclusivamente por isso, para os olhos de um sórdido e melindroso assunto, um belo filme para horas de lazer…
Justamente por isso, especulo a excentricidade de Bellocchio pode explicar que ele tenha “ressuscitado” o conturbado affair Mortara. Nem de longe, por outro lado, especulo que ele queira abrir frente com o papado de Francisco ou gerar mal-estar com judeus…
O tempo de Punhos cerrados (1965), passou, faz muito tempo.
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