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Críticas

Longlegs: Vínculo Mortal (Texto #1)

O Diabo acima das entrelinhas

Por Yuri Lins | 27.08.2024 (terça-feira)

Amanhã (28), estreia nos cinemas brasileiros Longlegs – Vínculo Mortal (Can./EUA, 2024), dirigido por Osgood Perkins, um lançamento antecipado que atende à expectativa gerada. O filme segue a agente do FBI Lee Harker (Maika Monroe) enquanto investiga uma série de assassinatos atribuídos ao serial killer conhecido como Longlegs (Nicolas Cage). Os crimes envolvem pais que matam suas esposas e filhos em famílias aparentemente normais. O único indício de que esses pais estão sob a influência do assassino são mensagens cifradas deixadas pelo criminoso para a polícia. À medida que Harker decifra essas mensagens e o caso se desenrola, seu próprio passado vem à tona, revelando uma conexão perturbadora entre Longlegs e sua história familiar.

Figuras traçadas na escuridão.

Para iniciar uma análise, concentro-me em uma cena específica que encapsula a essência da obra. Em um determinado momento da narrativa, a detetive Lee Harper (Maika Monroe) e o Agente Carter (Blair Underwood) chegam à fazenda de uma vítima do serial killer Longlegs em busca de pistas. O filme enquadra a cena em um plano aberto, com uma panorâmica que segue os dois até a construção, capturando o céu negro e tempestuoso. Raios, trovões e uma trilha sonora ameaçadora intensificam o clima de horror e perigo iminente. A composição em widescreen mantém distância dos protagonistas, e mesmo quando eles chegam à porta do celeiro com uma lanterna em mãos, o plano médio não destaca suas individualidades, mas as relaciona à superfície da edificação.  Um corte abrupto no momento em que abrem a porta os leva para dentro do local.  Em um plano extremamente aberto, Harper e Carter surgem como silhuetas na escuridão. O ambiente é iluminado apenas por suas lanternas, e embora a câmera se aproxime dos personagens, ela permanece livre para explorar o espaço e transmitir um senso de estranhamento. O filme não revela os sentimentos dos personagens; não vemos medo ou hesitação. A cada novo cômodo explorado, a busca não é pela revelação de subjetividades, mas pela exploração de possibilidades pictóricas do espaço: o efeito dos feixes de luz cortando a escuridão de ponta a ponta do quadro, a coloração de âmbar anêmico que mal se distingue do negrume, as partículas de poeira visíveis nos caminhos traçados pela luz, e os objetos que se tornam concretos quando iluminados, para em seguida voltarem à quase inexistência. Em Longlegs – Vínculo Mortal, o horror, ou melhor, a própria ficção, não se foca em desenvolver temas ou discursos, nem em criar uma narrativa coesa ou reinventar os códigos do gênero. Seu interesse está principalmente na composição visual dos quadros.

 

O espaço está sempre presente.

O diretor Osgood Perkins compõe cada imagem com rigor, alinhando as linhas do espaço em relação aos corpos dos atores e aos objetos cênicos. A escolha pela proporção de tela 2.39 : 1 permite captar mais do espaço cênico, e mesmo quando um close-up é necessário para a progressão dramática, a centralidade do rosto da personagem não compromete a visão do entorno. O fundo é sempre bem definido, e a textura é explorada pelo olhar do espectador, com a disposição simétrica desses elementos criando um sentido de desconforto físico. Perkins alcança esse efeito ao evitar uma grande variedade de movimentos de câmera e edições dinâmicas, que poderiam explorar as cenas de forma analítica. Se há planos mais fechados nos corpos ou objetos, eles jamais retiram o protagonismo dos planos abertos. À primeira vista, essas escolhas parecem opor o mundo ordenado da investigação criminal à dimensão caótica imposta pelo serial killer, cuja violência extrema e aparente arbitrariedade desestabilizam progressivamente a ordem, envolvendo tudo e todos em sua sombra. No entanto, essa progressão não ocorre, pois o mal, desde sempre, já estava circunscrito na própria ordenação; o demônio, como uma abstração, não está oculto nas entrelinhas do que é visível, mas está presente nas próprias linhas que definem aquele mundo.

Se a ordenação já provoca mal-estar e a dimensão demoníaca se manifesta nas próprias linhas dos planos, o mistério se revela com poucas surpresas. Em Longlegs – Vínculo Mortal, o fantástico não se insere gradualmente na normalidade cotidiana até asfixiá-la. Pelo contrário, a realidade é apresentada desde o início como algo já maculado. Com essa premissa, o trabalho de composição cinematográfica assumido é o de dobrar a aposta no artificialismo formal. Quando a narrativa exige um flashback para contextualização, ele é representado em uma janela 4×3, evocando antigas Polaroids. Para expressar o horror absoluto, seja o medo gerado nas vítimas ou a atmosfera mental do assassino, recorre-se a colagens, desenhos e imagens abstratas, aceleradas pela edição, que rasgam o tecido da realidade. Mesmo cenas que pedem uma maior intensidade no horror, por já estarem inseridas em um tom horrífico constante, surgem carregadas de histrionismo, com jumpscares que atingem o espectador e uma cacofonia sonora que o desestabiliza. Embora essa abordagem diferencie o filme de seus pares, conferindo-lhe uma identidade própria e evidenciando a assinatura de seu realizador, ela também parece refém de seu próprio exagero, tornando os caminhos e os mecanismos da narrativa irremediavelmente previsíveis a partir de certo ponto.

O passado é representado por uma proporção de tela que evoca antigas fotografias.

Osgood Perkins demonstra total consciência do produto que entrega ao escalar Nicolas Cage como o serial killer Longlegs. Cage, famoso por seus gestos excessivos e expressões carregadas, alcançou o auge em filmes como Coração Selvagem (1990) e Vício Frenético (2009), mas também se aventurou em papéis mais questionáveis em busca de lucro. Nesta produção, sua atuação atinge uma voltagem puramente camp, situada entre um rockstar glam dos anos 70 e as figuras esquizoides dos filmes de John Waters. Embora Cage permaneça dentro de seu repertório habitual, Perkins administra sua performance de maneira quase conceitual, sintetizando nela o que o filme constrói em cada aspecto de sua anatomia formal. Há histrionismo, mas também controle absoluto. Em direção oposta, a agente Lee Harker, com sua expressão de rigidez quase mineral e poucas palavras, ainda que pareça refletir a imobilidade daquele universo, sua austeridade ocasionalmente cede a lampejos de humanidade que contrasta com o esquematismo da obra.

Por fim, Longlegs – Vínculo Mortal carrega a sina da autoconsciência. Perkins afirma sua verve autoral em cada frame, eliminando qualquer vestígio de inocência. Cabe a outros críticos avaliar se sua estilística própria é tão significativa quanto ele sugere com seu esmero técnico e assinatura ideacional. Quanto a mim, o filme não provoca mais do que está escrito neste texto, fruto mais de uma obrigação profissional do que de uma verdadeira iluminação provocada pela obra. Embora sua plasticidade possa impressionar à primeira vista, uma análise mais aprofundada poderá revelar se o rigor estético realmente se sustenta nas relações entre seus componentes ou se é apenas uma superfície cuidadosamente polida, mas com alicerces fracos. A ver.

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