O Dia que Te Conheci
Não é só “poesia do cotidiano”. É bom cinema.
Por Luiz Joaquim | 19.09.2024 (quinta-feira)
“Poesia do cotidiano” deverá ser uma expressão que você lerá bastante por aí quando estiverem se referindo a O dia que te conheci (Bra., 2024), novo filme do mineiro André Novaes Oliveira, que entra em cartaz em diversas praças do país a partir da quinta-feira (26). Expressão se referindo não apenas ao novo filme mas também a sua filmografia de um modo geral. É boa, tal expressão, que, claro, não traduz todas as dimensões do talento de André. E nem esse texto que você lê traduzirá.
Mas, para falar de O dia que te conheci, vamos iniciar pelo final (sem spoiler, claro). E para tanto, recorremos a uma observação precisa que o realizador Marcello Lordello largou na quarta-feira (18) durante o debate que ocorreu após a pré-estreia do filme no Cinema da Fundação (Recife) com a presença de André.
Convidado pelo diretor mineiro para participar do bate-papo, Lordello destacou que o plano final do novo filme de André virá uma chave dentro da narrativa, colocando os protagonistas do filme – o bibliotecário Zeca (Renato Novaes) e a secretária Luiza (Grace Passô) – numa outra dimensão. A dimensão da fantasia, da leveza, da beleza do cinema clássico, em particular. E isso por um discreto e simples gesto técnico no plano fotográfico do filme. Apropriando-se, assim, de anos e anos de uma construção imagética que vaticinou e validou planos como o que vemos no final de O dia que te conheci como o do “verdadeiro” cinema.
Em outras palavras, a partir daquela janela, podemos, nos espectadores, finalmente, enxergar Zeca e Luiza pela ótica da nobreza do cinema.
A provocação de André, aqui, é tão discreta quanto poderosa. Colossal em sua sadia contradição interna. Isto porque, antes da “virada de chave” no final, Zeca e Luiza já se apresentam, durante todos os cerca de 80 minutos de duração do filme, como lindos e nobres em sua autenticidade.
Talvez a maioria dos espectadores não estejam atentos o suficiente para essa beleza, uma vez que andam dopados por anos e anos de casais lindos e perfeitos nas telas, envoltos em seus dilemas assépticos até que encontram o amor de suas vidas depois de algumas reviravoltas cômicas.
Pra começo de conversa, n’O dia que te conheci nunca saberemos se Zeca é mesmo o amor da vida de Luiza ou vice-versa. Isso não importa. Importa sim o acaso e a consequência desse acaso surgido, ou seja, um belo encontro em mais um dia trivial na vida dos dois.
Trivial entre aspas porque naquela sexta-feira, Zeca, com a ajuda de um ônibus quebrado, chega atrasado pela sexta vez na escola onde trabalha como bibliotecário. Perde o emprego mas ganha uma carona de Luiza para casa, no final do expediente. Ela é uma funcionária da secretaria da escola, com quem Zeca mal tinha trocado algumas palavras durante todo o tempo que trabalhou ali.
Não são precisos mais detalhes do enredo para se imaginar o desdobramento da carona.
Mas, mais uma vez, André Novaes não está interessado no rocambolesco que pode existir num enredo, e sim nos detalhes dos pequenos movimentos. Aqueles que revelam o quanto somos bonitos quando colocados na perspectiva do primeiro plano.
O casal de André Novaes Oliveira está longe da perfeição. Para começo de conversa, um dos elementos em comum que une os dois é a depressão e a ansiedade: mal das últimas décadas, amplificado pela pandemia da Covid-19. Em O dia que te conheci, Zeca e Luiza, por exemplo, falam entre um copo de cerveja e outro sobre seus ansiolíticos e antidepressivos com a tranquilidade de quem conversa sobre futebol.
O contraste da personalidade dos dois também reforça a comicidade. Luiza, uma loba, determinada. Zeca, tímido, distraído.
Assumindo os dois, Passô, gigante ao vestir a pele de Luiza com a naturalidade que só grandes atrizes alcançam, e Renato, que só evolui e refina a cada trabalho que assume com os chapas da Filmes de Plástico.
Uma (das várias) cenas da boa simbiose entre os dois: o casal conversa na rua, bebendo cerveja. Zeca faz um comentário negativo sobre a amiga de Luiza, que lhe deu um bolo. Luiza reage: “Você nem a conhece! Ela é minha amiga, não pode falar mal dela!”. É como um balde de água fria na atmosfera que estava aconchegantemente quente entre os dois.
Como reação à bronca, Renato olha reto pro horizonte. E seus olhos, eloquente e silenciosamente, nos transmitem que ele sabe que cometeu um erro e pode ter posto tudo a perder naquela bela amizade que se iniciava.
É o tipo de gesto, de comunicação, que até pode estar dada no roteiro, ou por uma orientação do diretor, mas é a composição do ator que a torna viva e emocionante para todos nós.
E olha que nem falamos da trilha sonora pensada por André, emoldurando momentos chaves, como a caminhada silenciosa de Zeca e Luiza pela noturna Belo Horizonte.
Parabéns Renato, Grace, André Novaes Oliveira e a toda a equipe de O dia que te conheci. Que honra para o cinema brasileiro tê-los por perto.
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