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Críticas

Othelo, o Grande

Cinebiografia de Grande Otelo é grata surpresa

Por Ivonete Pinto | 05.09.2024 (quinta-feira)

É com surpresa e curiosidade que se assiste a Othelo, o Grande (Lucas H. Rossi dos Santos, 2023), onde a serenidade e uma certa discrição na forma são usadas para revelar  uma vida superlativa. Sem maneirismos, o filme  incide no que Bill Nichols chama de Documentário Expositivo, associado ao  modo Reflexivo. Deixa que o tema se expresse, no caso o próprio Grande Otelo (1915-1993). 

Documentário de compilação, reúne arquivos de mais de seis décadas entre filmes  e entrevistas com Otelo. Busca o efeito de informar e fazer pensar, como resultado da organização do discurso. Ou seja, o que organizou o formato do filme foi o próprio material, notadamente, as falas de Grande Otelo.

Melhor Documentário no Festival do Rio 2023, Othelo, O Grande, é divulgado como “retrato intimista”, pois abre mão da voz off e dos fatídicos depoimentos que costumam  acompanhar  9 em cada 10 cinebiografias (não é um dado exato, é apenas a impressão do cenário). O que vemos tem sem dúvida um viés intimista, porém que faz emergir um tanto da identidade nacional, através dos filmes, e outro tanto da condição humana, por meio da vida espinhosa de Otelo.

Diferente do que podem esperar espectadores que viram em alguma plataforma da internet apenas os trechos cômicos de Otelo, nos filmes e na escolinha do Professor Raimundo, onde foi parar no final da vida, não é o humor que sobressai neste documentário. Temos a biografia  cronológica, mas não aborrecida ou burocrática. Até porque, este neto de escravizados estava marcado para ter uma vida nem um pouco ordinária. Começando com o apelido que pegou, cuja origem é mesmo o Othelo de Shakespeare, personagem que o então Sebastião queria ter feito, porém a baixa estatura não ajudou.

O documentário explora o racismo enfrentado por Otelo e sua consciência sobre a questão, influenciada por sua colaboração com Abdias do Nascimento e suas próprias dificuldades pessoais e profissionais.

Um gênio – e o termo aqui é empregado com todo rigor – cujo talento nato para a atuação e o canto é inquestionável  surgiu  quando ainda era um guri que se integrou a uma companhia de comédias. Nunca cursou qualquer escola para tal, tendo contado com o que hoje chamaríamos de uma  inteligência emocional,  que lhe garantia desempenhos admiráveis, tanto para a comédia, como para o drama. Uma criança prodígio tanto quanto o foi Orson Welles. 

Não é novidade para nenhum cinéfilo a relação com Welles, entretanto é muito bom  relembrar como se conheceram. Welles ficou siderado quando o viu, do alto dos seus mais de 1,80 cm , e  o convidou para atuar em  Tudo é Verdade (1943, inacabado).  Estarrecido também ficou Werner Herzog que, mesmo sabendo que Otelo não segurava suas falas em inglês, o manteve no elenco de Fitzcarraldo (1982) falando em espanhol mesmo. Diante de Klaus Kinski, a quem se referiu como “um sujeito horrível de se lidar”, Otelo mantinha-se no centro da cena do mesmo modo quando contracenava com Oscarito, parceiro de tantas chanchadas. Seu papel como Abanador Mor em Barnabé tu és meu (José Carlos Burle, 1952)  era pequeno, mas quem consegue olhar para outro lugar do quadro quando ele está em cena? Mesmo com Paulo José, na quase (ou pós) chanchada Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969), é o carisma de Otelo que energiza a tela.

Mortes – O diretor Lucas H. Rossi dos Santos, estreando em longa-metragem, não carregou as tintas nos fatos trágicos. Deixou alguns acontecimentos de fora, talvez para preservar o biografado. Contudo,  enfrenta o tema que mais abalou a vida de Grande Otelo e que repercutiu no alcoolismo e em uma noção profunda de família. 

A cena de Julieta e Romeu no balcão, em  Carnaval do Fogo (Watson Macedo, 1949),  é uma das mais célebres quando falamos de chanchada. Uma cena de fato icônica, pois engendra sozinha toda definição do que foi a chanchada: um movimento que “macaqueava” o cinema norte-americano (termo usado por Paulo Emilo Salles Gomes), ao mesmo tempo que debochava do mesmo. Avacalhava com sucessos clássicos do cinema, fazendo emergir o espírito brasileiro para a galhofa, o que, ao seu modo, carrega uma crítica insuspeita. No limite, um alicerce fundador para o cinema de invenção.

Pois esta cena do balcão, com Grande Otelo como Julieta e Oscarito como Romeu, foi rodada três dias após a primeira esposa de Otelo ter assassinado o filho de seis anos   e cometido suicídio. Há uma versão que corre de que a tragédia teria ocorrido no mesmo dia da filmagem da cena do balcão e que Otelo não sabia da notícia, pois o diretor propositalmente não teria lhe contado. Mas é Otelo mesmo em uma entrevista  que esclarece que fez a cena depois do ocorrido.  Arrasado, não conseguiu explicar como teve forças. Foi “um milagre”, diz ele. Ao revermos a cena com esta informação, o drama fica ainda maior, muito maior. 

O realizador Lucas H. Rossi dos Santos aborda com sensibilidade as tragédias pessoais de Grande Otelo.

Racismo – Entre os tópicos explorados por Lucas H. Rossi dos Santos não podia faltar o do racismo. Não que o mineiro Otelo seja vinculado a uma militância sistemática, tal qual a de atores negros que vieram um pouco depois, como Milton Gonçalves. No entanto, o filme selecionou momentos para mostrar a evidente  articulação das ideias e  a veemência de Otelo ao falar sobre o preconceito que sofreu (por exemplo, entrar pela porta dos fundos do Cassino da Urca, onde era atração de um espetáculo). 

A convivência de Otelo com Abdias do Nascimento, no Teatro Experimental do Negro, parece ter aprofundado sua consciência do racismo no Brasil. Apenas que sua trajetória não foi marcada pelo embate. Assim como responde em uma entrevista, que não tem tempo para a política, que sua política era fazer rir pois tinha uma família para criar, pode-se concluir que a família seja uma chave para entender seu posicionamento sobre a vida pública. Com seis filhos, trabalhando muito e ganhando pouco (sim, os cachês eram pequenos, mesmo na televisão) e administrando os problemas com álcool, não sobrava muito tempo. 

E a família, após a tragédia do assassinato-suicídio, ocupava papel central. Criou o filho da terceira esposa Joséphine Hélene,  Orson Soares. Nem ela nem ele são referidos no documentário, mas vale o registro extrafílmico de que esse outro Orson na vida de Otelo, como professor e pesquisador, contribui para a luta contra o racismo. Ele lançou em  2022 “A Bondade do Branco – Olhar da Branquitude sobre a Questão Racial no Filme Também Somos Irmãos”. Esse filme de 1949 protagonizado por Otelo circulou pouco, possivelmente por não ser uma chanchada não teve sucesso de público,  mas ilustra bem o talento dramático de Otelo, além de ser um manifesto antirracista. Resultado da parceria da Atlântida com o Teatro Experimental do Negro e dirigida por José Carlos Burle, é uma obra pioneira na temática. 

Rever alguns filmes em que Otelo atuou, agora sob a luz do documentário e do livro de Orson Soares, é uma chance de recuperarmos um pouco a história de Grande Otelo, cujos adjetivos sempre ficam aquém de sua imensa figura.

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