48ª Mostra (2024) – Dying: A Última Sinfonia
Cortante revisão sobre uma família fraturada
Por Luiz Joaquim | 26.10.2024 (sábado)
SÃO PAULO (SP) – O que está havendo na Alemanha que em um ano joga ao mundo Anatomia de uma queda, de Justine Trier, e, no seguinte, Dying: A última sinfonia (Sterben, Ale., 2024), de Matthias Glasner?
Não vá o leitor acha que Dying (título internacional do filme, do inglês “morrendo”) tem as mesmas pretensões discursivas, temáticas ou mesmo estéticas do filme de Trier. A comparação aqui vem apenas para indicar, de cara, uma noção de grandeza para o novo filme de Glasner, que, a propósito, venceu com essa obra o prêmio de melhor roteiro no Festival de Berlim e, agora, exibe na 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.
Pra começo de conversa é corrente dizer que bons filmes são identificados por pelo menos um ou dois momentos de ápice. Em Dying não há dificuldade em apontarmos quatro – sem falar na coesão de seu todo, que dura 180 minutos correndo fluido como água que sai de uma fonte mineral.
Dividido em cinco capítulos para nos apresentar a família Lunies – 1. Gerd (o pai); 2. Tom (o filho mais velho); 3. Ellen (a caçula); 4. A linha ténue; 5. Epílogo: vida – o filme passeia e nos provoca impiedosamente pela aflição da finitude da vida, mas sempre com o seu início (bebês nascem no filme) espreitando a existência de Tom e Ellen.
Ainda que os três primeiros capítulos caminhem independentes, nos apresentando o mundo de cada um dos membros dessa família pela sua ótica, esses capítulos correm num mesmo e crucial momento para os Lunies. Estamos falando da proximidade de morte do pai Gerd (Hans-Huwe Bauer).
Gerd, talvez próximo dos 80 anos, é portador do Mal de Parkinson e já apresenta sinais de demência em progressão. Mora sozinho com a sua esposa, Lissy (Corinna Harfouch), num município longe da capital. Lissy, além de cuidar de Gerd, precisa também administrar sua própria debilidade. A princípio, entendemos que ela sofre de uma incontinência intestinal que, depois, descobrimos ser só um indício de algo muito mais sério.
Tom (Lars Eidinger, espécie de William Hurt alemão) é um maestro que vive em Berlim trabalhando com o amigo de mais de 20 anos, Bernard (Robert Gwisdek). Este, um compositor que trabalha numa peça musical clássica de nome Dying. Ambos produzem e ensaiam uma apresentação a estrear com o patrocínio de uma fundação que promove a paz mundial.
Já Ellen (Lilith Stangenberg) é a auxiliar técnica de um dentista, Sebastian (Ronald Zehrfeld), com quem inicia um romance regado a álcool e festas. Autodestrutiva, ela se sente menor em sua condição de não ser a artista da família, embora tenha um latente talento para cantar.
Perto de Tom, complexo em suas relações com as mulheres, a personagem de Ellen é menos desenvolvida. Talvez porque o filme a apresenta como alguém que sabe o que quer. E o que ela quer é um companheiro que a acompanhe em sua decadência pela bebida, mesmo que este alguém seja um homem já comprometido.
Já o ponto que torna Tom tão interessante são exatamente suas incertezas. No capítulo dedicado a ele, descobrimos que sua ex-namorada Liv (Anna Bederke) – com quem viveu por sete anos e tornou-se sua amiga pelos dez anos seguintes – está dando à luz a um bebê que foi o fruto de uma relação casual com Moritz (Nico Holonis).
Em resumo, Liv decide que Tom será aquele que seguirá com ela criando sua filha. A criança é, afinal, a filha que ele sempre quis mas nunca concebeu nos anos em que viveu junto a Liv.
Em paralelo, conhecemos também as inquietações do deprimido Bernard por entender que não consegue alcançar a linha tênue nos ensaios com a jovem orquestra regida por Tom. A ‘linha tênue’, conforme Dying coloca, seria o espaço que fica entre aquilo que é incompreensível para o inculto e aquilo que é o medíocre para o intelectual. Seria o lugar preciso dessa intersecção, quando uma composição clássica conseguiria atingir, em consonância, o ignorante e o especialista
Ainda que Tom comente que este ‘lugar’ é um ideal, portanto nunca acessível, Bernard não se aquieta e afunda em sua depressão. A morte o ronda na medida em que ele alimenta suas constante ideias de tirar a própria vida. Tom sempre suscetível a ajudar, custe o que custar, tanto o amigo de décadas quanto a Liv – grande amor de sua vida -, acaba por anular a sua própria existência (ou, ao menos, fazer dela uma eterna espera).
No meio desse caminho, há ainda espaço para Tom colocar sob perspectiva a relação com a mãe moribunda enquanto ele ainda vive o luto pelo pai. E é ai que temos um dos ápices de Dying. Por um roteiro afiado como uma faca, cujas falas nos chegam cortantes na frieza de verdades reveladas pela mãe após décadas, temos um triunfo da dramaturgia.
Um outro ápice, daqueles de fazer suspender a respiração do espectador, mostra a morte de Gerd. É difícil recordar uma encenação tão simples e ao mesmo tempo tão comoventemente triste pela frieza e pelo vazio absoluto sobre o ‘deixar de existir’ de uma pessoa. Todo crédito à mise-en-scène com o ator Hans-Uwe que nos faz querer dar a mãe ao seu personagem a cada caminhada titubeante que promove em cena.
Um terceiro ápice nos é entregue naquele que parece ser, durante um ensaio, um primeiro acerto de Tom após muitas tentativas frustradas. Como diz o personagem, após sua orquestra tocar um trecho da peça conforme suas novas coordenadas, ele diz que ali, naquele momento, naquele espaço, pela beleza daquela sinfonia, nasceu algo. Nasceu a paz.
O quarto ápice nos chega no final. Com a primeira apresentação da versão definitiva da peça para uma plateia. A beleza da composição somada às quase três horas em que o espectador passou ao lado destes personagens, e de maneira tão íntima das misérias que atormentam as suas almas, causa um efeito devastador.
Não seria errado dizer que só pela atordoante composição original criada por Lorenz Dangel para Dying já valia ir ao cinema para conferir o filme. O que nos remete a um conselho: aquele que decidir ir ver o filme no cinema, que decida por uma sala com um bom equipamento de som e ar-condicionado silenciosamente dentro dos padrões profissionais de um auditório de cinema.
Nessa melodia com a qual o filme embala a eterna pergunta sobre qual ser o sentido da vida e qual o de continuar vivendo, tendo a família como ponto de partida e pautando as dores e a solidão dos personagens, o diretor Matthias Glasner nos dá uma ideia sobre de onde vem suas inspirações. A pista está numa cena com Tom, na sua solitária noite de natal assistindo, sozinho em seu apartamento, Fanny e Alexander.
Talvez Ingmar Bergman gostasse da referência e até, quem sabe, recomendasse Dying para os amigos verem no cinema.
Dying: A última sinfonia terá distribuição no Brasil, ainda sem data, pela Imovision.
Na 48ª Mostra o filme ainda pode ser visto amanhã (27) às 20h40 no Reserva/ na terça (29) às 15h no Cinesesc; e na quarta (30) às 16h na Augusta 1.
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