48ª Mostra SP (2024) – A Cozinha
Tesouro mexicano dentro de caixinha com infinita capacidade de sedução
Por Luiz Joaquim | 24.10.2024 (quinta-feira)
SÃO PAULO (SP) – A partir de hoje (24), numa sessão às 19h30 no Reserva 2, os frequentadores da 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo terão a felicidade de acessar este que é, com pouco margem de erro, um dos melhores filmes desta edição. A cozinha (La Cocina, Mex./EUA, 2024), de Alonzo Ruizpalacios, é tão estimulantemente rico em sua forma, tão extenso em seu conteúdo e tão comovente na afinação da dezena de excelentes atores dando vida aos personagens do filme que fica difícil escolher por onde começar a falar desta obra inesquecível.
Talvez seja um bom começo dizer que A cozinha simplesmente não para de nos surpreender do início ao fim (e isso não é um exagero) em sua capacidade de nos apresentar representações de contar uma história por imagem em movimento.
É como se na fotografia em P&B de Juan Pablo Ramirez não houvesse um só frame desperdiçado com o trivial. E o melhor, tudo em função do enredo, e não acima dele. A propósito, num breve momento, dentro de um frigorífico, a fotografia opta por inserir uma cor esverdeada. A inserção, ainda que poética e visualmente bela por si só, não está ali apenas como arroubo estético. Mas o espectador terá de esperar o final para fechar o sentido narrativo da coisa.
Além do rebuscamento de luz e enquadramento, o filme de Ruizpalacios nos presenteia com um dos planos-sequências contemporâneo mais inquietante e excitante do ponto de vista do ensaio, do “balé” que seus atores precisaram realizar para que a sequência provocasse o deslumbre que provoca. A cena começa na cozinha do restaurante The grill, na Times Square, em Manhattan.
E, mais uma vez, há um sentido narrativo claro naquele complexo balé entre atores e câmera: expor o inferno que é a cozinha de um restaurante em Nova Iorque na noite de uma sexta-feira, contrastando com a calmaria do salão onde os clientes aguardam a comida. Difícil pensar em deixar isso mais claro do que o que vemos em A cozinha.
Diante de um volume tão grande e de contínua e acertada inventividade na forma, combinada com o drama de seu conteúdo, A cozinha nos faz querer não sair de “dentro” do filme. Não querer mais deixar de sermos surpreendidos pela criatividade que parece escorrer como água sob forte vazão, tendo como fonte de origem a cabeça de Ruizpalacios.
É claro que Ruizpalacios não está inventando a roda, mas é muito revigorante encontrar um jovem com tanto talento para escrever tão bem com a mão da estética assim como com a mão do conflito humano e social. Na falta de um síntese mais eloquente, podemos dizer que ver esse cinema de Ruizpalacios é como ver um Martin Scorsese mexicano fazendo o seu Touro indomável na cozinha de um restaurante.
Sobre o conteúdo, temos Pedro (Raúl Briones, impressionante). Impetuoso, esquentado e apaixonado pela garçonete Julia (Rooney Mara). Ele é um cozinheiro imigrante do México que integra o grande time do chef (Lee Sellars) do The Grill.
Pedro é apenas mais um da dúzia de imigrantes de todas as partes do mundo – Dominica, França, Inglaterra, e de outros países com línguas não simples de identificar – que trabalham no restaurante. São funcionários a quem o proprietário Rachid (Oded Fehr) costuma iludir. Rachild entra ali pisando com a onipotência de um deus assustador e temido, mentindo que irá legalizar a situação de seus empregados nos EUA apenas para que trabalhem mais estimulados.
Dois conflitos centrais – irrigado por muitos outros – se cruzam no caminho do enredo: Um, houve o sumiço de pouco mais de 800 dólares na contabilidade da noite anterior e o incompetente gerente Luís (Eduardo Olmos) terá de entrevistar todos os funcionários para tentar descobrir um suposto ladrão e, dois, Júlia está grávida de Pedro, que tenta impedi-la de ir a uma clínica naquele dia fazer um aborto.
No entorno de todas as questões, o preconceito contra os imigrantes e a luta por algo além da comida e do salário. É como se Ruizpalacios dissesse que imigrantes também direito ao sonho. Tem direito à rosa além do pão. E diz lindamente. Seja pela sua eloquência e elegância estética, seja pela contundência de seu discurso.
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