48º MostraSP (2024) – Anora
Cinderela XXX
Por Luiz Joaquim | 22.10.2024 (terça-feira)
SÃO PAULO (SP) – Há cerca de dois meses, quando a produção da 48º Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, começou a publicar suas primeiras postagens no perfil do Instagram um dos 60 mil seguidores comentou algo do tipo: “Não esqueçam da Palma de Ouro. Mostra sem Palma de Ouro não é a mesma coisa”.
O cinéfilo autor se referia ao natural burburinho em torno nas sessões de ‘medalhões’ – títulos premiados em Cannes, Veneza, Berlim, Locarno, San Sebastian, Roterdã e por aí vai – que brilham e geram dispustas durante as cerca de duas semanas do evento.
A Palma de Ouro 2024, Anora (EUA), de Sean Baker, está por aqui e os ‘mostreiros’ ainda têm a chance de vê-lo por duas agendas – às 20h50 da sexta-feira (25) na Cinemateca Brasileira; e às 18h40 da terça-feira (29) na sala Augusta 1. Isso sem contarmos a ‘repescagem’. Aquelas sessões extras que a Mostra anuncia após o final oficial do evento.
Mas muitos ‘mostreiros’ sabem que Palma de Ouro tem distribuição comercial garantida no Brasil e com Anora, que estampa a vinheta da Universal Pictures em sua abertura, não será diferente. O filme tinha sua estreia, a propósito, agendada para 31 de outubro, ou seja, um dia após o final da 48º Mostra. A Warner, que cuidará desta distribuição no Brasil, pensou inicialmente em aproveitar o tal burburinho que o filme provocaria em São Paulo para atiçar suas bilheterias no resto do Brasil, em novembro.
Mas 31 de outubro é data de estreia de Megalópolis, de Francis Ford Coppola, que também exibiu em Cannes. Mas a vinda de Coppola para encerrar a Mostra e o potencial sombreamento que isso causaria na estreia de Anora na mesma data não devem ter sido o motivo para a mudança na data de estreia brasileira do filme de Sean Baker (a nova data é 23 de janeiro de 2025).
A razão maior certamente reside na aposta que a distribuidora faz contando que Anora irá arregimentar alguma quantidade de indicações ao Oscar 2025, cujo anúncio destas indicações ocorrerá exatamente uma semana antes (no 17 de janeiro) de sua estreia no circuito exibidor nacional.
E, uma vez visto o filme, fica claro que a Warner precisa mesmo trabalhar com atenção este lançamento para que tenha um mínimo de re$ultado no conservador circuito mainstream das salas de cinema no Brasil.
Isso porque, Palma de Ouro à parte, Anora parece sexualmente provocador demais para os padrões caretas da maioria dos multiplex no Brasil, que costumam enterrar filmes assim em solitárias sessões diárias, ali na faixa das 21h ou 22h. O empurrãozinho de indicações ao Oscar (está considerando a Warner) talvez melhore o desenho de lucro desse lançamento.
O FILME – Ainda sobre Cannes 2024, cujo júri oficial foi presidido por Greta Gerwig, é difícil ver Anora e não imaginar o entusiasmo da diretora de Barbie olhando a personagem título do filme de Baker (interpretada vivamente por Mikey Madison… sua indicação à estatueta dourada está a caminho) como uma heroína moderna – tal qual foi sua Barbie em 2023, só que, agora, sexualmente apimentada.
Ani é uma dançarina erótica numa muito avermelhada boate chamada Quartel-general. Lá pratica a lap dance, estimulando o baixo instinto de seus clientes, podendo fazê-los relaxar também num outro ambiente mais reservado.
E Baker já dá o tom do que está por vir nos créditos de abertura do filme, quando a câmera do fotógrafo Drew Daniels corre lateralmente numa espécie de apresentação glútea do time feminino do Quartel-general.
A câmera desliza para a esquerda até chegar a funcionária Anora/Ani, 23 anos, nascida em Miami, neta de uma russa, e de personalidade forte, que, entre uma lap dance e outra, briga com seu chefe na boate pelos seus direitos trabalhistas.
Naquela mesma noite, Ani conhece Ivan (Mark Eidelshtein), um megamilionário garoto russo, de 21 anos e postura de 15, com quem se diverte para além do que as suas obrigações na boate lhe exigem.
O que começa como uma brincadeira transforma-se num casamento de conveniência, com o filme deixando explícito que a conveniência é para Ivan, desejoso de um green-card para morar nos EUA, e deixando apenas como sugerido o entusiasmo de Ani em torna-se rica da noite para o dia.
Todo o desdobramento do filme se estende na triste comédia da desconstrução, ou anulação desse casamento pelos capangas da família do noivo. De qualquer forma é interessante (ou quase matemático) como Baker marca a primeira parte de Anora, apresentando seu modo de vida ultra-rico e de excessos na sua mansão e em noitadas por Las Vegas
Por uma montagem rápida, quase ‘videoclíptica’, Baker vai nos surpreendendo cada vez mais com a falta de limite para o luxo na vida do moleque, que se divide entre o videogame, o cigarro eletrônico, as festas, drogas e o sexo, o qual pratica como um coelho sem paciência. Ainda que soe banal e irresponsável (e é), Ivan é apresentando como um sujeito bacana com Anora.
A moça acredita na proposta de casamento do moço como algo sério, para a vida, e é aí que Anora, o filme, tem seu ponto frágil, ainda que Baker arremate o filme, no final, com uma sequência resolvendo bem o que está por trás da personagem de Ani.
Assim como em Tangerine (2015) – cuja protagonista a propósito se chama Sin-Dee Rella – é por um belo desfecho numa sequência, sem diálogos, que Baker é mais eloquente em Anora. É ali que ele abre espaço para o que há de mais humano numa relação entre gente.
Mas antes de chegar lá, há uma contínua e barulhenta agitação com rebuliço divertidos nas 2h20 de Anore. Toda aquela orquestrada confusão está interessado é mesmo neste gesto silencioso final. Assim como está interessada toda a trapalhada engraçada vista em Tangerine em sua 1h30.
A diferença entres os dois filmes é, portanto, física. Está exatamente nesses 50 minutos de diferença que fazem de Tangerine um filme redondo e Anora um com gordurinhas de redundância.
A fluidez na narrativa de Baker em Anora não cansa o público, é verdade, mas a longa extensão, sem conteúdo para tanto, apenas distrai daquilo que importa.
E o que o importa é essa personagem, Ani, dona de si, que tem uma profissão difícil (ainda que aqui maquiada de divertida), e vê num casamento acidental a sua salvação – e ainda por cima com um garoto superficialmente bacana. É a história de uma Cinderela moderna e às avessas, com o ‘sapatinho’ que revela o seu verdadeiro ‘eu’ substituído, no caso do filme, pelo sexo rápido, dentro de um carro velho.
Baker merece crédito, claro, por construir bem essa aproximação entre a sua Cinderela do lap-dance com o seu verdadeiro príncipe. Um outro, e não o mega-milionário russo.
Além do desfecho bonito do filme, talvez a maior contribuição de Anora esteja numa conversa entre Ani e Garnick (Vacha Tovmasyan), um capanga de Toros (Karren Karagulian), o responsável por Ivan nos EUA.
Na conversa, Ani, em sua confusão e sofrimento, insiste na certeza de uma acusação a Garnick dizendo que ele a teria estuprado numa situação anterior vista no filme, caso, lá, eles estivessem sozinhos. Ele, estupefato, pergunta, “por que”, “Porque você tem olhos de estuprador”, responde ela depois de procurar um pouco na sua cabeça por uma resposta, sem ainda se dar conta de que ele é o único ali que a enxerga não como um pedaço de carne.
A ironia criada por Baker é que essa conversa acontece num clima quase romântico, à noite, com ambos relaxados, depois de uma conversa leve e de sorrisos. E, ali sim, eles estão absolutamente sozinhos.
É para desarmar. E, talvez, desarme.
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