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Dossiê Walter Hugo Khouri – 95 Anos (Texto #2)

As angústias de um feminismo burguês

Por Carolina de Oliveira Silva | 21.10.2024 (segunda-feira)

– na imagem acima, As Filhas do Fogo (1978)

Em 21 de outubro de 2024, o cineasta paulista Walter Hugo Khouri completaria 95 anos. Dono de uma poética composta por 26 filmes, Khouri foi por muito tempo lançado ao antagonismo do Cinema Novo na historiografia nacional. Hoje, longe das celeumas estéticas e ideológicas, o cineasta é lembrado por sua exploração cirúrgica da condição humana e da crítica a uma burguesia hedonista e depressiva.

Para homenagear o legado de um dos mestres da cinematografia brasileira, organizamos um pequeno apanhado de textos inéditos redigidos por críticas da Abraccine acerca do cinema khouriano de gênero, algo ainda a ser explorado com maior cuidado; e por alguns alunos do curso e Jornalismo do Centro Universitário Belas Artes, em São Paulo. (Donny Correia)


As angústias de um feminismo burguês

Carolina de Oliveira Silva[1]

       Conhecido – e criticado – por seu “retrato” da burguesia brasileira, principalmente no que se refere ao universo feminino, Walter Hugo Khouri (1929-2003) ainda é capaz de invocar personagens femininas singulares, principalmente quando pensadas no contexto brasileiro. Em filmes como As filhas do fogo (1978) e Amor Voraz (1984), o estabelecimento de conexões com os temas da literatura gótica convocam uma figura emblemática do qual estudiosas como Ellen Moers chamou de Female Gothic. O termo refere-se à literatura gótica escrita por mulheres a partir do século XVIII, assim como às histórias protagonizadas por mulheres. Nessa toada, Ellen recupera obras como Frankenstein (1818) de Mary Shelley e aponta para as experiências da maternidade como algo central – tema, de certa forma, visitado pelo cineasta.

Amor Voraz

A tal da maternidade acontece de maneiras distintas nos filmes: em As filhas do fogo, Diana (Paola Morra) invoca sua mãe por meio de fotografias e das histórias de outras mulheres, mulheres essas que tampouco estão vivas; já em Amor Voraz, a mãe de Anna (Vera Fischer), a protagonista, nunca parece, mas arquiteta cada passo da filha de longe, que se encontra em uma espécie de retiro. Diana e Anna vivem trancafiadas em suas mansões isoladas na natureza – uma atualização dos castelos medievais –, e promovem, de maneira simbólica, as ansiedades domésticas de seu tempo, ultrapassando temáticas como a maternidade e adentrando a recortes mais subjetivos, tais como o corpo e a sexualidade.

Nesse sentido, revisitar o contexto brasileiro, principalmente no âmbito do movimento feminista entre 1970-80, é rememorar como os espaços também eram habitados pelas mulheres. Ao encontrar na ditadura militar o denominador comum para a expansão do movimento feminista brasileiro – a maioria com mulheres da classe média, com acesso à universidade, casadas e com filhos –, esses grupos promoviam encontros em suas próprias casas, angariando ao ambiente doméstico um status diferente dos castelos góticos.

As Filhas do Fogo

“Essa reflexão era feita em casa, entre quatro paredes, não se propunha e não podia extravasar o âmbito do privado: “a gente nunca apareceu em público, o grupo era fechado, a militância política que estava impossível no Brasil tem muito a ver com o fato de se fazer um grupo feminista fechado dentro de casa, tipo cachorrinho em apartamento (…)” (COSTA, 1988, p. 66)

Tais reflexões, promovidas em uma conjuntura de terror e medo, compartilham das angústias femininas incompreendidas e ainda pouco atravessadas por marcadores de diferença como a classe e a raça –, mas não por isso menos passíveis de discussão. Para Diana, a agonia das vozes do além, rememora um passado sombrio do qual é difícil se desvencilhar; já para Anna, a inquietude diante de um corpo-homem estranho surgido das águas a faz parecer, entre as próprias mulheres, completamente insana. As heroínas “aprisionadas” de Walter Hugo Khouri ultrapassam o papel de vítima e tornam-se, em certa medida, seus próprios aprisionamentos. Nessas histórias, não existem mocinhas ou vilãs, pelo menos não de maneira tão delineada quanto se gostaria, existem essas mulheres herdeiras de grandes fortunas, privilegiadas, mas não por isso menos confusas em suas facetas, humores e estímulos.

 

Bibliografia

COSTA, Albertina de Oliveira. É viável o feminismo nos trópicos? Resíduos de insatisfação. Cad. Pesq. São Paulo (66), pp. 63-69, 1988. Disponível em http://publicacoes.fcc.org.br/index.php/cp/article/view/1206/1212. Acesso em 26 junho, 2021.

MOERS, Ellen. Female Gothic. In Literary Women: The Great Writers (New York: Doubleday, 1976; rpt. Oxford University Press, 1985), pp. 90-98. Disponível em: http://knarf.english.upenn.edu/Articles/moers.html. Acesso em 28 junho, 2021.

[1] Doutoranda do PPG em Multimeios da Unicamp, mestra em Comunicação Audiovisual, Especialista em História da Arte, Bacharel em RTV. É membro do grupo editorial da Revista Zanzalá, colunista de FC da Revista Especular, colaboradora do portal Delirium Nerd – Cultura sob o olhar feminino, professora universitária, roteirista e crítica de cinema (ABRACCINE).

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