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Dossiê Walter Hugo Khouri – 95 Anos (Texto #3)

O Anjo da Noite (1974)

Por Letícia Magalhães | 21.10.2024 (segunda-feira)

“Em 21 de outubro de 2024, o cineasta paulista Walter Hugo Khouri completaria 95 anos. Dono de uma poética composta por 26 filmes, Khouri foi por muito tempo lançado ao antagonismo do Cinema Novo na historiografia nacional. Hoje, longe das celeumas estéticas e ideológicas, o cineasta é lembrado por sua exploração cirúrgica da condição humana e da crítica a uma burguesia hedonista e depressiva.

Para homenagear o legado de um dos mestres da cinematografia brasileira, organizamos um pequeno apanhado de textos inéditos redigidos por críticas da Abraccine acerca do cinema khouriano de gênero, algo ainda a ser explorado com maior cuidado; e por alguns alunos do curso e Jornalismo do Centro Universitário Belas Artes, em São Paulo.” (Donny Correia)


O Anjo da Noite (1974)

Letícia Magalhães[1]

Lembro-me de meu primeiro – e nem um pouco estranho – encontro com a obra de Walter Hugo Khouri. Foi justamente com seu Estranho Encontro. Eram os idos de 2012 ou 2013 – difícil precisar considerando que eram anos pré-Letterboxd. A TV Justiça apresentava todas as sextas-feiras na faixa das 21 horas um filme nacional antigo, no que batizaram de “Sessão Cinemateca”. Já havia visto uma boa quantidade de chanchadas, além de filmes surpreendentes como a obra-prima ainda bastante menosprezada Também Somos Irmãos (1949). O filme de Khouri de 1958 começou naquela noite, com o carro na estrada pós-créditos, a música ao piano trocada pela canção do rádio e a mulher que desfalecia frente ao veículo.

Nos mais de dez anos seguintes, tive encontros esporádicos com a obra de Khouri, primeiro com seu episódio de As Cariocas (1966), depois com sua Noite Vazia (1964), que foi classificado como Khouri imitando, ou talvez cordialmente referenciando, o estilo de Michelangelo Antonioni. O Anjo da Noite, feito uma década após Noite Vazia, bebe de outras fontes, como o noir Uma Vida por um Fio (Sorry, Wrong Number, 1948) e o thriller psicológico Os Inocentes (The Innocents, 1961).

A senhorita Ana (Selma Egrei) se candidatou para um emprego. Chegando lá, já há uma perturbação: a moto elétrica da criança que está andando pelo jardim causa em nós o que a música já vinha gerando – desconforto – por todo o caminho que Ana fez de carro. Ana entra na casa, devidamente ciceroneada por Beatriz (Isabel Montes), e o zumbido musical cessa. Ele volta quando Ana coloca a cabeça para fora da janela, mas dentro da casa ele é inexistente.

O trabalho lhe é explicado de dentro de uma banheira por dona Raquel (Lilian Lemmertz), que a contratou através de uma agência de babás para cuidar de seu casal de filhos naquela noite. Os primeiros momentos com Carolina (Rejane Saliamis) e Marcelo (Pedro Coelho) são quase idílicos para Ana. Mas basta os pais saírem para Beatriz soar o alerta: “cuidado com essas crianças. Essas crianças são frágeis, quebradiças”.

Marcelo é exageradamente apegado ao vigia noturno da propriedade, Augusto (Eliezer Gomes), que confidencia para Ana que não gostou muito de mudar de profissão, de jardineiro para vigia, embora uma crise de saúde o tivesse obrigado a tal. À noite tinha calafrios, vontade de chorar, tristeza, mas não medo. É bem depois do cair da noite, quando as crianças já estão dormindo, que começam os telefonemas.

Quem fez a chamada telefônica faz ameaças e geme. Ana fica perturbada. Antônio aconselha descanso. Ela decide ver as crianças e encontra Marcelo acordado, brincando com sua arma de brinquedo. E os telefonemas continuam, interrompendo os estudos noturnos de Ana.

Os créditos iniciais anunciam que o roteiro é de Khouri, inspirado numa ideia de Fernando Cesar Ferreira, com trechos de uma história de Hugo Conrado (pseudônimo do diretor). Porém, como já mencionado, no quesito “crianças sinistras” o filme se relaciona com Os Inocentes, adaptação para o cinema do romance de Henry James, adaptação esta feita por ninguém menos que Truman Capote. Nesse filme e em O Anjo da Noite, é o menino a criança em destaque e sua relação com a babá é posta à prova por acontecimentos que perturbam as mulheres responsáveis pelo cuidado.

Já tratamos da importância da trilha e efeitos sonoros para criar o clima da narrativa, mas vale o reforço. Barulhos como o coaxar dos sapos ajudam a ambientar a história numa fazenda afastada dos barulhos da cidade – e de outras pessoas. O ruído da arminha de brinquedo bastante realista de Marcelo incomoda até o ponto em que a brincadeira com Augusto se torna perturbadora. Por outro lado, a trilha sonora original é assinada por Rogério Duprat, colaborador constante de Khouri e nome importante tanto para a música eletrônica quanto para a Tropicália.

O Anjo da Noite foi filmado em Petrópolis. Um par de minutos é gasto mostrando a paisagem que Ana vê enquanto sobe a serra. A fotografia neste momento toma conta de nossa atenção, fotografia que foi inclusive premiada no Festival de Cinema de Gramado, onde a película ainda colheu os prêmios de Melhor Ator para Eliezer Gomes e Melhor Diretor. Ganhou também o Troféu APCA de Melhor Filme de 1974.

Ainda tenho muito a explorar e aprender sobre Walter Hugo Khouri e o cinema brasileiro em geral. É uma falta que não me causa preocupação, mas sim me motiva. Ser uma eterna aprendiz é o que me move. E não podia ser melhor que na companhia de Khouri.

[1] Letícia Magalhães é historiadora e crítica de cinema. Contribuiu com sites como Filmes e Games e Leia Literatura. Mantém desde 2010 o blog Crítica Retrô, sobre filmes clássicos e antigos, e contribui para os sites Revista Eletrônica Ambrosia, Café História, Jornal Nota e Cine Suffragette, no qual é também editora. Foi vencedora do prêmio do Collegium do Festival de Cinema Mudo de Pordenone em 2021, escrevendo sobre o que mais gosta: cinema e história.

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