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Críticas

Marias

A imagem ausente

Por Yuri Lins | 21.10.2024 (segunda-feira)

O documentário Marias (Bra, 2024) chama atenção logo de início por se diferenciar de outros no gênero. Pensado originalmente como uma biografia de Maria Prestes, importante militante comunista e segunda companheira de Luiz Carlos Prestes, o filme se desdobra em duas direções. A primeira acompanha o cotidiano atual de Maria, em suas visitas a ocupações, assentamentos e universidades, sempre rodeada por novas gerações de ativistas. A segunda abordagem, mais ousada, entrelaça a trajetória de Maria Prestes com as histórias de outras mulheres brasileiras chamadas Maria, seja de batismo ou por necessidade, todas envolvidas em lutas coletivas. Mais do que uma biografia de uma figura singular, o documentário busca enraizar suas intenções ao usar o nome “Maria” como um símbolo que não apenas representa individualidades, mas também ilumina uma linhagem  – uma linhagem que antecede e seguirá além de sua protagonista.

Como fio condutor desses entrelaçamentos históricos, o documentário utiliza uma narração em primeira pessoa feita pela realizadora Ludmila Curi. É ela quem evoca momentos das trajetórias de Maria Bonita, cangaceira, e Maria Curupaiti, soldado na Guerra do Paraguai. Curi também revela surpresas, como o fato de Olga Benário, militante e primeira companheira de Luiz Carlos Prestes, entregue a Hitler pelo Estado Novo, e a presidenta Dilma Rousseff, torturada durante a ditadura militar e deposta em um golpe no período democrático, terem usado o nome “Maria” na clandestinidade. Esse nome, por mais comum e cotidiano, funcionava como um escudo em tempos sombrios. E, como esses tempos ainda persistem, Ludmila traz a presença incontornável de Marielle Franco, vereadora do Rio de Janeiro, assassinada e ainda sem justiça, que embora não tenha sido registrada como “Maria”, refletia a mesma força e engajamento das demais. Assim, as histórias dessas mulheres se entrelaçam com a biografia de Maria Prestes, revelando que todas são ramificações de um mesmo tronco. Esse tronco, crescido em solo hostil e sob constante ameaça de violência, nunca deixou de gerar frutos – os quais o documentário busca nas muitas Marias anônimas que continuam a atuar nos movimentos sociais contemporâneos.

A perseverança de Maria Prestes está presente nas ativistas que atuam nos movimentos sociais da atualidade.

O texto da narração é habilidoso ao abordar uma variedade de interesses com alto valor informativo. Com uma redação de tom jornalístico, traz clareza às informações históricas e biográficas, ao mesmo tempo em que demonstra talento em incursões mais  poéticas, sem evitar a subjetividade da narradora. Ludmila expressa seu engajamento emocional com a protagonista, sua história e os demais personagens, criando um elo que impede o risco do filme cair em um didatismo de prognóstico. No entanto, uma escolha formal que desestabiliza as expectativas do espectador é a ausência total de Maria Prestes em cena. Embora o filme acompanhe suas visitas a universidades, ocupações e encontros com movimentos sociais, Maria nunca é representada diretamente; sua presença é relegada ao fora de campo, percebida apenas nos rostos daqueles que a observam.

Pode-se argumentar que o filme opta por descentralizar sua protagonista em favor do coletivo, não destacando sua estatura ou autoridade, mas sim a reverberação de suas ideias e como são assimiladas pelos outros, o que faria  dessa ressonância a verdadeira protagonista da obra. No entanto, em determinado momento, o filme revela que a ausência física de Maria Prestes resulta de sua própria decisão de não autorizar o uso de sua imagem pela produção. Os motivos dessa escolha não são esclarecidos; não se sabe se derivam de um desconforto com a abordagem da equipe, de uma insatisfação mais duradoura ou, de maneira intrigante, se, em consonância com sua perspicácia política, ela teve um insight criativo mais ousado do que o que fundamentou o filme – que seria um documentário biográfico sobre sua vida –, forçando a obra a alcançar o que parecia, até então, uma premissa consciente da direção: afastar-se do indivíduo para dar visibilidade ao coletivo.

Com a ausência de Maria Prestes, o documentário é obrigado a construir o filme utilizando outros regimes imagéticos

A bem da verdade, se por um lado a ausência imposta por Maria Prestes oferece ao filme uma limitação que, paradoxalmente, pode revitalizar sua forma, por outro, sua chegada tardia — quando o filme já havia acumulado uma quantidade substancial de material centrado em sua figura e performance — pode ter colocado a obra em sérios apuros.  Com a ausência de Maria Prestes, o filme é levado a construir sua narrativa — inclusive a que acontece no presente — por meio de imagens que tateiam o mundo ao redor dela. São registros do povo, de pessoas que assistem às suas palestras ou que a recebem em ocupações e assentamentos. No entanto, para um filme que também busca mostrar a ação política da protagonista nas lutas atuais, o que ele revela desse universo não vai além da superfície dos primeiros contatos. A cada rosto, vê-se olhares tímidos, hesitantes, até desconfortáveis; a cada roda de conversa, capta-se pouco mais que o trivial. Falta, e a ausência é sentida, um interesse profundo pelo mundo que se pretende retratar; aquele interesse genuíno pelo outro, por sua presença e sua capacidade de narrar a própria história, de falar sobre o presente e seus anseios. Sem a protagonista, fica evidente que, apesar da boa intenção, o filme obteve desses universos visitados apenas imagens ilustrativas, fugazes; e se sua ideia inicial não tivesse sido frustrada pela ausência de Maria Prestes como figura central, esses retalhos de mundo serviriam apenas  para compor o contracampo de seu protagonismo, imagens acessórias para endossar a sua persona — aquela que o filme compõe — e  seu discurso —  aquele que o filme deseja. 

Em tempos sombrios, seguem as lutas de todas as Marias, conhecidas ou anônimas.

Forçado a lidar com imagens frágeis, o filme tenta compensar essa limitação recorrendo a outros regimes imagéticos: utiliza imagens de arquivo que retratam momentos históricos da vida de Maria Prestes e se arrisca em cenas ficcionais que imaginam sua juventude. O projeto ainda viaja à Rússia para explorar relatos do exílio de Maria e seu companheiro. Cada uma dessas tentativas busca preencher a ausência da protagonista, mas a sensação de uma falta irreparável permeia todas as escolhas, fazendo com que Marias se torne imerso em desorientação. Embora a incerteza, quando bem trabalhada, possa abrir novos flancos de investigação, esse potencial não se concretiza aqui. O filme revela lacunas de desejos não realizados, uma falta de tato com o universo que pretende retratar e, pode-se dizer, até mesmo uma má sorte essencial que, como um fio solto desmanchando um novelo, colocou suas intenções em risco. Ainda assim, Ludmila Curi tenta, com sua narração, suprir essas deficiências o melhor que pode, mas o resultado é uma tensão entre o texto e as imagens, em que a narração idealiza e tenta sustentar algo que as imagens não conseguem transmitir. O texto de Ludmila, por mais preciso e bem escrito, poderia prescindir totalmente da construção cinematográfica, sendo igualmente apreciado em uma página impressa. Assim, não é apenas Maria Prestes que está ausente; o próprio cinema também parece faltar.