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Festivais

15ª Janela (2024) – Amantes

O evangelho do amor segundo John Cassavetes e Gena Rowlands

Por Davi Barros | 08.11.2024 (sexta-feira)

Em uma das cenas finais de Gertrud (1964), obra derradeira de Carl Theodor Dreyer, a protagonista lê um poema de sua juventude para seu amigo Axel: “Olhe para mim, sou bela? Não, mas já amei. Olhe para mim, sou jovem? Não, mas já amei. Olhe para mim, estou viva? Não, mas já amei.” Ela lhe revela que esse era seu “evangelho do amor” e que sua crença no “amor omnia” (o amor é tudo) perdurou até sua velhice e continuará para além da morte, uma vez que essas linhas serão a inscrição em sua lápide quando ela morrer. Talvez possa parecer estranho mencionar um filme tão diferente em estilo de Amantes (Eua, 1984), de John Cassavetes, mas ambos são dois dos grandes tratados sobre o amor em todo o cinema (uma curiosidade um tanto mórbida e peculiar que ambos tenham sido feitos no fim da carreira dos cineastas, relativamente próximos de suas mortes). Cassavetes já havia revelado que o amor era a única coisa que lhe interessava, e no seu penúltimo filme, todas as rotas levam para esse caminho tortuoso.

Muitos dos protagonistas de Cassavetes parecem derivar de personagens coadjuvantes da Hollywood clássica: dúbios, contraditórios e incapazes de ocupar plenamente o centro narrativo, quase sempre punidos no fim. Eles anseiam demais, sentem demais, bebem demais, amam demais. Sarah deseja retornar à sua família, e Robert só aprende a amar verdadeiramente quem o deixará, movido pela esperança que desperta durante um sono febril. Personagens profundamente patéticos, no sentido grego de pathos, capazes de despertar tanto paixão quanto sofrimento. Assim como Fassbinder viu nos melodramas de Sirk, Cassavetes compartilha com o cineasta alemão a criação de personagens que, por vezes, vislumbram o que realmente procuram, mas logo perdem isso de vista e repetem os mesmos erros. O momento mais evidente disso no filme ocorre quando Robert abraça seu filho após uma noite fora, bebendo com mulheres. Ele se agarra ao filho, que tenta se afastar dele, e a câmera faz um zoom no rosto de Robert/Cassavetes, capturando por breves segundos sua feição plena, naquele abraço carente. A câmera de Cassavetes, em toda sua filmografia, parece querer penetrar na epiderme de seus personagens vulcânicos, como se buscasse, através dela, “o segredo que as amantes escondem”, como seu personagem repete no filme para as mulheres que tenta conquistar.

Quando o amor sobrepõe o corpo humano.

Há que lembrar também de Shirley MacLaine como Ginnie Moorehead em Deus Sabe Quanto Amei  de Vincente Minnelli, que facilmente poderia ser mais uma das personagens desesperadamente apaixonadas de Cassavetes. Ginnie carrega sempre seu bichinho de pelúcia e permanece em uma cidade desconhecida, esperando pelo homem que ama a ponto de estar disposta a dar seu olho direito por ele. Uma personagem típica de Minnelli, que nos leva a refletir sobre mulheres como Sarah, mulheres para as quais só Deus sabe o quanto amaram. E, ao falar de Amantes, é impossível não mencionar Gena Rowlands, “centro desse filme prodigioso, o mais bonito que o cinema alguma vez inventou”, como disse João Bénard da Costa sobre Shirley/Ginnie — palavras que poderiam muito bem se aplicar a Rowlands. Sarah ama tanto que seu amor a transcende, forçando-a a se deitar em momentos de grande tumulto. A única maneira de seu amor ser expresso é através do excesso, seja nas bagagens intermináveis que ela carrega ao aeroporto ou no mini zoológico que monta no quintal de Robert. Esse excesso a conecta com o personagem de Cassavetes, e talvez seja por isso que ela é a única pessoa no filme que ele consegue realmente amar. O excesso de Sarah só encontra plenitude em um palco onírico, assim como Mabel, em Uma Mulher Sob Influência (1974), encontra refúgio de sua vida neurótica no lago dos cisnes. Sarah se torna a estrela de seu próprio espetáculo distorcido, e é através dele que consegue se reerguer. Uma das cenas mais belas e trágicas do filme, bela porque oferece um dos poucos lampejos de união familiar, trágica porque lançará Sarah novamente em um espiral de humilhação. Ela cai e retorna, sustentada por uma frágil, mas imprescindível, ilusão amorosa.

Marido e esposa, irmão e irmã, ator e atriz.

É redundante afirmar que um filme não seria o mesmo sem determinado ator ou atriz, mas isso é especialmente verdadeiro no caso de Cassavetes e Rowlands. Coloco Gena ao lado de John como responsável pela magnitude de seu trabalho, pois os filmes que realizaram juntos são frutos desse amor explosivo; não há como separá-los. Ela é o centro pulsante de suas obras, a força que as leva à sua máxima estatura. Basta observar a cena em que ambos se encontram pela primeira vez neste filme: Robert/Cassavetes se joga nela em um abraço longo e apertado. Nesse momento mágico, podemos tanto ver o amor do personagem por Sarah quanto o amor do ator/diretor por Gena. A tela transborda, e a ficção e a realidade se tornam uma só, assim como os corpos de Sarah/Rowlands e Robert/Cassavetes. Seriam necessárias incontáveis páginas e dissertações para falar de cada detalhe dos filmes que fizeram juntos; como esquecer a maneira como Gena mexe em seu cabelo volumoso, aquela casa repleta de fotografias e pinturas na parede (recheadas de referências à vida e aos filmes de Cassavetes), o rosto ensanguentado do protagonista enquanto ouve seu filho dizer que o ama, a cena do boliche, ou o cachorro que dorme com Sarah em seus momentos de crise? A lista poderia continuar, mas me detenho aqui. O motivo pelo qual escrevo este texto em primeira pessoa é que não consigo estabelecer uma distância completamente objetiva do filme; ele me afeta de forma dilacerante. Fico embriagado de amor por esses personagens falhos, mas tão belos, que Cassavetes e Rowlands apresentam. Termino com uma frase de Roland Barthes, em Fragmentos de um Discurso Amoroso, pois as palavras começam a me escapar: “EU-TE-AMO. A figura não se refere à declaração de amor, à confissão, mas ao repetido proferimento do grito de amor.”.

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