15ª Janela (2024) – O Pardal na Chaminé
A (Inquietante) beleza do caos
Por Davi Barros | 07.11.2024 (quinta-feira)
Charles Baudelaire, O mau vidraceiro.
Em O surrealismo, o último instantâneo da inteligência europeia, Walter Benjamin comenta sobre A confissão de Stavrogin, de Dostoiévski, observando no texto do autor russo “uma justificação do Mal que exprime certos motivos do surrealismo com mais força do que jamais conseguiram os seus propugnadores atuais”. Para Benjamin, o Mal surge da nossa própria espontaneidade, uma criação divina independente do Diabo, incorporada à natureza humana. Essa violência primal e ancestral emerge com brutal estranheza em O Pardal na Chaminé, manifestando-se em palavras, gestos e atos. Porém, a mise-en-scène de Ramon Zürcher perturba ainda mais, não apenas pelas ações, mas pela inquietante naturalidade com que são filmadas. Trata-se de uma raridade no cinema contemporâneo, um filme que desorienta completamente o espectador, sem lhe oferecer indicações fáceis sobre como reagir: rir ou horrorizar-se diante dessas bizarras intrigas familiares, evocando o humor diabólico de Martha (1974), de Rainer Werner Fassbinder, outro exemplo em que o familiar se transforma em estranheza.
Na trama de O Pardal na Chaminé (Suíça, 2024), Karen (Maren Eggert) vive com o marido Markus (Andreas Döhler) e os filhos em uma casa no campo, herança de sua família. Quando sua irmã Jule (Britta Hammelstein), acompanhada do marido e filhos, chega para celebrar o aniversário de Markus, o que começa como uma reunião familiar logo se transforma em uma festa marcada por desconforto e mágoas não resolvidas. Em meio a essa tensa teia de relações, acompanhamos os diversos microcosmos que compõem a dinâmica familiar. A impulsiva Johanna (Lea Zoë Voss) flerta com o tio; o jovem Leon (Ilja Bultmann) manifesta uma violência crescente; Christina (Paula Schindler) hesita em retornar ao seio familiar, enquanto Jule (Britta Hammelstein) revive lembranças amargas sobre o relacionamento com a mãe controladora.
Zürcher oferece tempo e espaço para que essas tensões se desenvolvam, criando uma narrativa repleta de ressentimentos e conflitos silenciosos. Este tipo de estrutura, já característica do diretor, é visível também em seus trabalhos anteriores, como A Gatinha Esquisita (2013) e A Garota e a Aranha (2021) (co-dirigido por Silvan Zürcher e também produtor deste novo filme). Contudo, se nos filmes anteriores o lado passivo-agressivo e as farpas entre os personagens surgiam pontualmente, em O Pardal na Chaminé esses aspectos se intensificam e se desdobram. Isso talvez se deva ao fato de que, enquanto os filmes anteriores se centravam em fábulas sobre a vida familiar na cidade, neste novo trabalho predomina uma lógica de sonhos, onde os conflitos vêm à tona de forma mais pungente e explícita.
Como reagir e escrever sobre um filme em que uma galinha decapitada voa brevemente enquanto uma garota observa a cena sem esboçar qualquer reação, como se fosse algo comum? A primeira tentativa geralmente é interpretar o filme, cavando fundo em busca de seu “verdadeiro” significado. Sendo uma obra de festival europeu, muitos poderiam, à primeira vista, associá-lo à linhagem de Michael Haneke e companhia, em que os personagens parecem ratos de laboratório, friamente analisados pelo diretor-cientista que, dono do saber, chega a uma conclusão pré-fabricada de que o ser humano é perverso e de que se vive em uma sociedade doente. Porém, um olhar mais atento notará que esse não é o caso, pois tal análise deixaria de lado elementos essenciais do filme: o uso da música, os planos-detalhe meticulosos dos móveis da casa e seu inegável senso de humor, que beira o perturbador. Outra abordagem comum seria interpretar o filme pela via da psicologia: a mãe castradora que governa os filhos mesmo após a morte e todos os clichês patologizantes lançados por críticos e afins, sem a mínima reflexão. Ainda que seja quase impossível não pensar no conceito freudiano de Unheimliche, que, segundo Schelling, “é tudo o que deveria ter permanecido secreto e oculto, mas veio à luz”, já que se trata de um filme no qual pensamentos intrusivos e o que se buusca reprimir dominam os personagens. No entanto, Zürcher também não parece interessado em justificar racionalmente todos os comportamentos daquelas pessoas. Então, o que resta?
Talvez o que perturba tanto em um filme como esse seja o seu caráter não moralizante, apesar de todos os atos questionáveis que surgem ao longo das quase duas horas. Por estar mais próximo do onírico, o longa possui essa qualidade estranha e familiar, como As Duas Faces da Felicidade (1965) de Agnès Varda, onde a superfície bucólica exibe uma família perfeitamente feliz, como se estivesse em um comercial de margarina, só para, no fim, perceber-se o alto preço dessa suposta felicidade. É interessante mencionar o filme de Varda por também compartilhar com Zürcher o enfoque na natureza. A direção quase matemática do suíço parece estabelecer um tipo de ordem que remete à harmonia inquietante do meio ambiente (o “caos reina” lançado pela raposa em Anticristo de Lars von Trier vem à mente), onde gestos e sons parecem obedecer a uma coreografia meticulosamente planejada, tornando explosivos os momentos em que algo (ou alguém) se quebra. Quase como em Jeanne Dielman (1975) de Chantal Akerman, outro filme no qual o controle leva ao descontrole.
O Pardal na Chaminé parece escapar das classificações por estar localizado no império dos sonhos e do desejo. Menciona-se um caso lésbico envolvendo a mãe da protagonista, que perturba profundamente seu marido, a ponto de ameaçá-la de morte. O desejo irrompe como uma força destrutiva e desgovernada, não necessariamente negativa, mesmo quando violenta. Liz (Luise Heyer), bióloga e amante do marido de Karen, fala brevemente curiosidades sobre vaga-lumes, especialmente a relação entre sexo e morte que existe neles, remetendo um pouco ao que Georges Bataille argumenta em O Erotismo (“É a vida misturada com a morte, mas nele, no mesmo instante, a morte é signo da vida, abertura ao ilimitado”). É por isso que os personagens anseiam tanto pelo caos, pois só ele oferece um novo começo, indefinido mas libertador. Aqui, uma casa em chamas não causa angústia, mas alívio.
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