38ª LIFF – A Semente da Figueira Sagrada
Quando uma figueira não é só uma figueira
Por Ivonete Pinto | 14.11.2024 (quinta-feira)
– Cobertura do 38º Leeds International Film Festival (LIFF)
Para um filme da envergadura de A Semente da Figueira Sagrada (Dāne-ye anjīr-e ma’ābed, 2024) poucos caracteres não são suficientes. Considerando, no entanto, que o espectador do filme é um cinéfilo e alguém já familiarizado com os temas políticos do cinema iraniano contemporâneo, é possível pular boa parte do contexto. E como já escrevemos muitos textos sobre (incluindo os para o CinemaEscrito e uma tese), ficam aqui apenas algumas linhas para registrar a importância desta obra de Mohammad Rasoulof, Prêmio Especial do Júri, além do prêmio Fipresci no 77º Festival de Cannes. Há quem não tenha gostado da Palma de Ouro para a comédia romântica Anora (EUA), mas de alguma forma foi capaz de sensibilizar a presidente do júri, Greta Gerwig, filiada a um cinema mais, digamos, cor de rosa. Mas nos vêm à lembrança a reação de boa parte da crítica (não só aos jurados Fipresci), impactada pelo filme iraniano.
A força de A Semente da Figueira Sagrada está em conjugar imagens de arquivo absolutamente recentes, com um drama social familiar. Iman (Misagh Zare) é um advogado investigador que trabalha na Corte Revolucionária de Teerã, o Tribunal Revolucionário, criado no início da revolução islâmica de 1979 para julgar casos políticos (ou seja, tudo o que for contra os princípios da revolução). Após 20 anos, Iman alcança um posto mais avançado na carreira, com um salário melhor, tornando-se um investigador com poderes para examinar processos e, e maneira visivelmente compulsória, concluir pela culpa do réu. Após sua decisão, ao juiz acima dele só resta dar o veredito confirmando a pena, no caso, a de morte.
Ocorre que, na trama ficcional, isto acontece justamente quando explodem as rebeliões de mulheres contrárias ao uso do véu, item faz parte do hejab. Então entram no filme as imagens de arquivo, captadas por celular, e que estão frescas na mente dos espectadores. O estopim – ou o episódio mais grave – foi a morte da jovem de origem curda Mahsa Amini, acusada de não cobrir os cabelos. (Nota: o caso mais recente não deu tempo para entrar no filme, o da estudante que ficou apenas de calcinha em sutiã como reação a uma investida policial sem motivos. Conforme fontes iranianas, ela está agora presa em uma clínica psiquiátrica).
Os eventos pela liberdade no Irã, iniciados na última década, tiveram cineastas comprometidos com sua divulgação. Jafar Panahi pagou caro por rodar um filme durante as manifestações da chamada Primavera Árabe (não esquecendo que o Irã não é árabe, mas os acontecimentos no Oriente Médio como um todo ficaram assim conhecidos, por estarem em sintonia). Panahi filmou sem consentimento, em um filme nunca realizado, foi preso novamente, etc. Mohammad Rasoulof é mais jovem que Panahi, tem 51 anos, mas já foi preso pelo mesmo motivo, e cresceu durante os desdobramentos da revolução islâmica de 1979. Viveu todo o clima de terror imposto às pessoas comuns, que não podiam desviar-se um milímetro das pesadas leis de observância à sharia. Parece que quanto mais censurado, mais incisivo precisa ser na denúncia ao regime.
Pesadelo – Em A Semente da Figueira Sagrada, vemos as duas filhas de Iman, nos seus 15 e 19 anos, em contato com o “mundo lá fora” que a internet propicia e, graças a ela, é possível criar subterfúgios para driblar a censura do governo dos aiatolás. O novo posto que seu pai ocupa e que é comemorado inicialmente pois terão uma casa maior, com um quarto para cada uma, etc., vira um pesadelo. Precisam seguir com mais rigor as regras de comportamento: nada de redes sociais, nada de esmalte nas unhas (a lista de proibições é bem maior). Na dramaturgia de Mohammad Rasoulof, entra em cena uma amiga ferida em um dos protestos e um redemoinho de situações coloca em risco a segurança da família. No centro da trama, a arma do pai desaparece, tendo como principal suspeito alguém da própria família.
Neste aspecto, o enredo toma ares universais, ou pelo menos historicamente mais amplos, pois podemos comparar com o clima de perseguição e paranoia stalinista, por exemplo. Todos são vigiados todo o tempo, em todo lugar. Todos são suspeitos de traição. Ecos também de dramas shakesperianos e de personagens da Revolução Francesa, por suposto. O que nos impede de ver este filme de Rasoulof como apenas um filme de gênero (aliás, ele consegue escapar do gênero policial ao não cair numa solução previsível para o roubo da arma) é justamente sua cor local, que ganha contornos universais se pensarmos até aonde vão as ditaduras, os regimes totalitários, mesmo que situados nos trópicos de vez em quando.
A acertada inclusão de imagens de arquivo, de modo orgânico na montagem, faz de A Semente da Figueira Sagrada um libelo em favor da liberdade. Não aquela de poder propagar notícias falsas ou de manipular consciências, mas de poder sair à rua sem cobrir cabelos (aí entra uma questão milenar ligada ao patriarcado que daria outro artigo); a liberdade de não cumprir uma ordem que claramente fere direitos humanos.
Rasoulof, junto com filmes anteriores como Manuscritos Não Queimam (2013) e Não Há Mal Algum (2020, vencedor do 77º Festival de Berlin, ver crítica aqui), torna-se um aguerrido combatente do regime. Ocupa um lugar que Jafar Panahi e Asgar Fahradi não dão conta. Abre mão, com isso, de investigações de linguagem às quais Kiarostami se dedicou, e paga um preço alto por isto. Em 2023, filmou A Semente da Figueira Sagrada clandestinamente, com os celulares da pequena equipe desligados para não serem rastreados. Chegou a contrair Covid em locações do interior do Irã, dando entrada com identidade falsa em um hospital. Foi sentenciado a 8 anos de prisão por assinar uma petição para que as forças de segurança soltassem os presos políticos. Montou o filme na Alemanha, para onde fugiu cinematograficamente (até hoje não revela detalhes). Deixou o Irã sem lenço nem documento porque não tem o mesmo propósito de vida de seu personagem Iman, que só queria dar uma vida (mais) confortável para a família. Em tempo: a tradução para o título, “A semente da figueira sagrada”, termo também utilizado em um título de uma novela do escritor persa Ahmad Mahmud, se refere a uma espécie de figueira cujos galhos crescem estrangulando a própria árvore. Metáfora maior não tem.
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