Malu
Réquiem para uma mulher
Por Davi Barros | 25.11.2024 (segunda-feira)
“O meu amor
É só para a mulher: criança e mãe
Só por ela comprometo-me de todo o coração.”
– Pier Paolo Pasolini, Bestemmia
Essa frase do polêmico cineasta e poeta italiano abre o livro Sex, The Self and The Sacred Women in the Cinema of Pier Paolo Pasolini (2007) de Colleen Ryan-Scheutz, obra que busca explorar a importância das personagens femininas em suas narrativas. A autora começa pela origem de seu fascínio com as mulheres. Susanna Pasolini, sua mãe que lhe deu o gosto pela poesia, em contraste com o seu pai Carlos Alberto, um homem de inclinações fascistas e temperamento volátil. A influência dela em seu trabalho é inegável, desde poemas como Súplica à minha Mãe (1961) até filmes como Mamma Roma (1962), no qual essa madre fanciulla (menina/mãe) engloba as contradições da Itália daquela época. Essa expressão italiana serviria bem para a protagonista do longa-metragem de Pedro Freire, Malu (BR, 2024), que coexiste nessa intersecção entre mãe e filha, juventude rebelde e a desilusão da vida adulta.
A narrativa acompanha a personagem-título (Yara de Novaes), que mora com sua mãe religiosa e conservadora Lili (Juliana Carneiro da Cunha) no Rio de Janeiro dos anos 1990. Malu vive nas memórias de seu passado quando era atriz de teatro, incapaz de seguir em frente e lidar com as novas gerações, que, segundo ela, traíram o espírito libertador despertado pelos artistas de sua época. Trata-se de um filme que respira teatro das menções à Bertolt Brecht e Henrik Ibsen até a própria direção de atores, com a precária casa onde os personagens habitam servindo como esse espaço cênico no qual se desenrolam suas intrigas e angústias. Como John Cassavetes e Ingmar Bergman, que transitaram tanto pelo cinema quanto pela direção teatral – influências declaradas do diretor Pedro Freire –, o coração do filme reside nas atrizes vulcânicas que encarnam essas mulheres fascinantes, maravilhosas e, ao mesmo tempo, insuportáveis. Em destaque estão Lili e Malu, forças opostas que se atraem e repelem ao mesmo tempo, vivendo entre caricias e agressões verbais e físicas. As crueldades intrínsecas da vida familiar, com suas farpas e ressentimentos, não são escondidas aqui, tornando-se essencialmente o cerne da narrativa. As personagens simplesmente são, com todo o seu amor e ódio que coexistem em seus âmagos, e o filme aceita isso. Como em um Sonata de outono (1978), traumas são regurgitados por essas mulheres com forte intensidade e de forma explosiva, monólogos dilacerantes sobre eventos do passado que trazem à tona dores incuráveis.
É interessante que não há praticamente homens nesse filme, o ex-marido de Malu e pai de sua filha Joana (Carol Duarte) é lembrado através de insultos pela protagonista e o que resta dele se reflete negativamente no estado da casa onde ela habita. Em uma das primeiras cenas, Malu tem um embate com um padre (Márcio Vito), deixando claro desde o início que este tipo de masculinidade hegemônica não é bem-vinda ao universo do filme (já que fora mencionado o poeta italiano, é impossível não pensar que a fala de Malu, dizendo que “deus era comunista”, não carrega uma certa influência pasoliniana). Quem é bem-vindo nesse mundo é Tibira (Átila Bee), que foge dos padrões normativos de gênero e sexualidade, formando com essas mulheres uma caótica família artística. Se fosse lançado décadas atrás, Malu talvez seria classificado como um woman’s film (filme de mulher), produções protagonizadas por divas como Joan Crawford e Barbara Stanwyck enfrentando os dilemas impostos as mulheres de sua época, que de certo modo seriam atualizados por duplas como Paul Newman e Joanne Woodward (O Preço da solidão, com suas relações desajustadas entre mãe e filhas pode ser considerado como um predecessor deste), geralmente escanteados pela crítica e público, ocupados demais com “histórias mais importantes”, aquelas protagonizadas por homens e seus problemas sérios. A câmera é inquieta como suas personagens, nunca parece se estabilizar por completo, sempre em movimento e por vezes, quase grudada no rosto dessas mulheres, querendo captar cada mudança de expressão.
Em determinado momento do filme, Lili aponta que um espécime de flor que ela está criando precisa sofrer para ficar bonita, Malu a olha de forma suspeita, relembrando momentos traumáticos com sua mãe que lhe impôs sofrimento para ela ser “bela”, ou seja, se conformar. Não há saídas fáceis para os dilemas dessas mulheres e a força do filme reside em nunca cair em binarismos moralizantes – aqui o riso é acompanhado do choro, uma caricia de um tapa, um não exclui o outro. Uma festa de aniversário, cheia de amigos e momentos de partilha, se encerra no outro dia com uma tentativa de assassinato. Os personagens vivem esses extremos emocionais como uma montanha russa dos sentimentos que nunca parece ter fim. David M. Halperin em seu livro How to be Gay (2012) aponta que, na cultura ocidental, os conflitos geracionais entre mulheres geralmente são vistos pelo público hegemônico masculino como “vagamente desonroso – tendendo ao excessivo, histérico, hiperbólico ou grotesco – e, em qualquer caso, menos do que totalmente sério”. Mesmo com os supostos avanços que pensamos ter atingido, é tristemente provável que um filme como Malu seja visto apenas como mais uma curiosidade do cinema brasileiro contemporâneo. O longa parece se encontrar na mesma linhagem de de cineastas obcecados por mães e atrizes: Pedro Almodóvar em Tudo Sobre Minha Mãe (1999), com sua emocionante dedicatória final; Werner Schroeter que começou sua carreira homenageando aquela que fez seu nariz sangrar de tanta emoção, capaz de fazer o tempo parar: Maria Callas; Paul Vecchiali, diretor de No Alto das Escadas (1983) onde uma versão ficcional de sua mãe é interpretada por Danielle Darrieux, atriz que ele venerava ardentemente. Nesses realizadores, a mãe e a atriz coabitam esse mesmo espaço de devoção, só para elas que eles se comprometem de todo o seu coração. Pedro Freire, que realizou esse filme em memória de sua mãe Malu Rocha, aqui parece operar nessa mesma paixão que os cineastas citados, mas atenção: a devoção deles não implica em uma adoração cega, na qual essas mulheres são alçadas ao olimpo onde não devem ser tocadas. Se elas os tocam tão profundamente é justamente devido a humanidade que elas possuem, suas falhas, loucuras e excessividades. Como Gena Rowlands em Amantes (1984), elas transbordam para além de seus corpos na tempestuosidade das relações humanas, sonhando com acontecimentos e feitos que provavelmente nunca serão realizados em vida. Mães meninas, mulheres, mulheres, como já anunciava a comédia amargurada de Paul Vecchiali lançada em 1974, com suas divas decadentes e estonteantes, que se inicia com uma citação de Albert Camus: “sim, acredite em mim: para viver na realidade, encene um espetáculo”. As personagens de Malu parecem também seguir, conscientemente ou não, a máxima de Oscar Wilde de que a vida deve ser uma obra de arte: elas podem estar na sarjeta, mas algumas delas estão olhando para as estrelas.
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