O Auto da Compadecida 2
O difícil equilíbrio de, 25 anos depois, tentar ser diferente e tentar ser igual simultaneamente.
Por Luiz Joaquim | 23.12.2024 (segunda-feira)
Ir ver O auto da Compadecida 2 (Bra., 2024) é como ir a um show de uma banda que você curtia descontroladamente na juventude. Ao chegar ao concerto, sua adrenalina já está alta pela excitação de reencontrar aqueles que lhe foram tão íntimos em momento tão valioso da sua vida. Você irá curtir ainda que, hoje, perceba os integrantes da banda um tanto diferentes daqueles da sua memória, pelo peso do tempo. Afinal, passou um quarto de século entre a última apresentação deles e a atual, e, mais: ainda que os arranjos das músicas estejam ‘modernizados’ (porque assim o mercado espera), você está disposto a se divertir mesmo se dando conta que nem os artistas, nem as melodias soam como aquelas dos anos 1990/2000.
A boa notícia é que O auto da Compadecida 2, retomado sob direção de Guel Arraes – em roteiro coassinado por João Falcão mais colaboração de Jorge Furtado e Adriana Falcão; e produzido pelas estrelas Selton Mello e Matheus Nachtergaele – não desafina, mas não nos faz dançar ‘como se não houvesse amanhã’ como fez o filme #1 há 24 anos.
Aquele foi um pequeno fenômeno que estreou em setembro de 2000 em 95 salas, levando cerca de 2,1 milhões de espectadores aos cinemas. O filme #2 estreia nesta quarta, Natal, 25 de dezembro.
Fenômeno é uma boa palavra considerando que O auto da Compadecida, antes de ganhar as telas dos cinemas em 2000, foi uma minissérie de sucesso levada ao ar em janeiro de 1999. Foi, de cara, um dos mais celebrados (com justiça) lançamentos da tevê brasileira naquele ano. A própria natureza da série já era distinta das demais. Foi rodada em formato de cinema e montada com a agilidade jovial que o próprio Guel Arraes ajudou a estabelecer na tv brasileira dos anos 1980 (lembrem-se do Armação ilimitada e da TV Pirata).
A série O auto… resultou num programa de quatro episódios que totalizavam 2h40min. de duração. O sucesso foi estrondoso. Levado ao ar às 22h30, chegou ao pico de 39 pontos indicados pelo Ibope. Quando ficou decidido que a Globo Filmes lançaria nos cinemas um corte, digamos, ‘cinematográfico’, a versão desta obra que é a mais lembrada por todos, o filme, ficou com duração de 1h44min.
À época, duvidava-se se as pessoas pagariam para ver um filme no cinema cujas imagens e história conheciam de casa, pela tevê. E a versão ‘cinematográfica’ de O auto… manteve o ritmo televisivo. A remontagem do material original feito para a tevê se viu com um trabalho cuja quantidade de cortes era imensa, considerando a então média de cortes (1.200) para longas-metragens.
Na ocasião, Guel Arraes deu entrevistas lembrando que um filme de ação de Hollywood costumava chegar a 1.800 cortes. O auto da Compadecida tinha incríveis 2.225 cortes. Uma anomalia para o cinema brasileiro de então. Anomalia que deu certo.
Era um trabalho audacioso desde a origem, pensado para a tevê, pois teve uma média diária de 60 planos rodados em 35mm, quando sabe-se que 20 planos rodados por dia já é considerado um ótimo rendimento numa produção cinematográfica.
O AUTO DA COMPADECIDA 2 – De volta à analogia do novo show musical da sua velha banda favorita: um provável padrão de comportamento do pública que irá lotar as salas de cinema nesse primeiro final de semana do filme é a do sorriso pronto, no rosto, quando O auto… #2 iniciar sua projeção. Isso porque o desejo desse público em voltar a rir com Chicó (Selton Mello) e João Grilo (Matheus Nachtergaele) por novos quiprocós é prévio a qualquer imagem ou nova ideia que o filme vier a apresentar.
Nova ideia, vale registrar, que tem como ponto de partida a obra original de Ariano Suassuna (1927-2014) – a peça homônima lançada em 1955 que deu origem à série de 1999 -, mas que não tem uma vírgula escrita por Ariano.
No enredo, estamos de volta a Taperoá e vemos o reencontro emocionado de Chicó e Grilo. Esse último retornando à pequena cidade nordestina, 20 anos depois, como uma celebridade após as histórias de sua ressurreição depois de um julgamento entre o Diabo como acusador, Nossa Senhora como defensora e Jesus Cristo como juiz.
Esperto, como sempre, Grilo aproveita-se da fama para tentar tirar proveito dos 2 candidatos à prefeitura de Taperoá: o Coronel Hernanes (Humberto Martins, excelente) e o Seu Arlindo (Eduardo Sterblitch), dono de um monopólio midiático em Taperoá.
Enquanto isso, Chicó, com sua habitual covardia, se enrabicha com a moça da cidade grande, Clarabela (Fabiula Nascimento) ao mesmo tempo em que tenta evitar a fúria do pai da jovem, o Coronel Hernandes. Clarabela, à propósito, é um personagem fracamente desenvolvido que, à certa altura, parece ser esquecido pelo enredo com a chegada de Rosinha (Virginia Cavendish), antigo amor de Chicó. Ela retorna à história como uma caminhoneira (!).
Rosinha caminhoneira, independente, dona de si, mulher livre inclusive de ciúme dos velhos casos amorosos de Chicó enquanto ela estava ausente, é um dos elementos que O auto… 2 se esforça para destacar em suas assertivas sociais, soando, por vezes, quase professoral.
No novo julgamento que João Grilo passa no céu, por exemplo, o Diabo critica a Compadecida (Taís Araújo) e a sua capacidade de julgamento só por ela ser uma mulher, para logo ser repreendido por Grilo por tamanha misoginia.
As pontuações, mesmo tão marcadas, não comprometem o todo de O auto… 2, mas as inserções de alguns ‘causos’ mentirosos contados por Chicó a Grilo sim. A sacada de fazer as encenações dos ‘causos’ chegar a nós por meio de animação é bonita de ver, mas a graça pelo exagero das mentiras aqui boladas nesse novo roteiro todo original é difícil de enxergar até com a ajuda de um microscópio.
De qualquer forma, como afirmamos, o fato de Chicó estar trazendo novos causos para os seus fãs será a graça que eles quererão escutar, mesmo que a graça não esteja lá.
Melhor prestar atenção às boas performances do que há de novo no filme #2. Em outras palavras: Martins, Sterblitch e, ainda que em participação rápida, mas marcante, o sempre bom Luis Miranda. Aqui como o malandro carioca Antônio do Amor, um parceiro de Grilo nas falcatruas que aprontavam quando o nordestino esteve no Rio de Janeiro no intervalo de 20 anos do enredo.
Ainda como destaque, uma quase palpável alegria de Selton e Nachtergaele em retomarem a estes dois personagens tão determinantes no intercurso da carreira da dupla. Os atores fazem soar pelas entrelinhas de suas performances algo de sagrado na amizade de Chicó e Grilo. São dois atores de uma grandeza descomunal que, ainda que irregulares nas sequências de humor deste filme #2, não decepcionam quando ativam o modo da ternura para ressaltar o amor de amigos, infinito, entre os dois personagens de Ariano.
Uma pena que a trilha sonora incidental não traga as canções originais como, por exemplo, Como vai você (original na voz de Antônio Marcos em 1973), mas aqui com um arranjo e numa performance de Chico César em desequilíbrio com o que se vê na tela. Como imaginar também que Canção da América (na voz Milton Nascimento em 1979) ficaria mais emocionante na voz do pernambucano João Gomes? Como?
Mais triste é também, já próximo do final do filme, o seu tom autoindulgente, quando Chicó anuncia seu pensamento de criar um novo cordel sobre a história da nova ressurreição de João Grilo. Escuta logo da amada Rosinha sobre o risco que estará correndo, com gente podendo dizer que o primeiro cordel (filme) era melhor.
Na última imagem Chicó adianta, diretamente se dirigindo ao público, que a “história é essa” e que a vende por 10 contos, mesmo sabendo que tem gente que não paga nem 5 por ela”.
Soa tristemente como um pedido de desculpas para aqueles que não acharem a sequência tão bacana como a obra original. É triste porque tenta disfarçar sua autopiedade. E é triste porque também soa falso em sua intenção.
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