X

0 Comentários

Festivais

11ª Porto/Post/Doc (2024) – Tardes de Solidão

Albert Serra explora a ambiguidade e a performatividade em sua primeira incursão no documentário.

Por Renato Cabral | 03.12.2024 (terça-feira)

Albert Serra é um cineasta do ambíguo e da performatividade. É aquele típico realizador europeu com ar intelectual, óculos escuros, humor peculiar e uma postura de quem sabe algo que não sabemos, como se a piada estivesse em nós, que o assistimos. Poderíamos até mesmo defini-lo como um realizador pendular, que em alguns momentos é amado e, em outros, odiado. Agora, em seu primeiro documentário, Tardes de solidão (Esp, 2024), entrega um exemplar perfeito desse ato oscilatório que provoca. Saiu do Festival de San Sebastián laureado com a Concha de Ouro, ao mesmo tempo em que surgiram as mais duras críticas de sua carreira, por tratar das violentas touradas em uma filmagem que busca a melancolia, a beleza e a transcendência através da figura de um protagonista de duelos: o toureiro peruano Andrés Roca Rey.

O toureiro Andrés Roca Rey é apresentado como uma figura contraditória: performer grandioso, mas solitário e preso à masculinidade exacerbada.

Em entrevistas, o realizador afirma que, em momento algum, pensou em filmar para os anti-touradas. Sua missão, segundo ele, era registrar esse ambiente de forma inocente, como encara todos os seus projetos: ver o que resulta das imagens sem pré-conceitualizá-las. É difícil aceitar essa declaração de um cineasta da verve de Serra, que também se posiciona como favorável à cultura da tauromaquia. Porém, seu filme agradou a alguns ativistas contrários aos eventos. Creio que talvez não tenham assistido às entrevistas do cineasta antes de ver o documentário. Seja como for, as imagens de Serra são impactantes e falam por si mesmas através de uma repetição que, além de cansativa, é exasperante em relação à violência, ao sangue e à adrenalina. O vermelho do sangue está em tudo na bela cinematografia, captada com diversas câmeras na arena de combate.

Agora, é compreensível o fascínio de alguns por esse universo. Ele pode proporcionar sensações diversas, intensificadas pela energia do público. Roca Rey, o toureiro-protagonista, que o diga. Apesar de ser vendido por Serra como um grandioso performer, religioso e comprometido com sua arte (é assim que Serra o enxerga), Rey é um ser solitário, que vive de quarto em quarto de hotel, isolado e alimentado por elogios incessantes e cansativos. Por vezes, é descrito como um “macho de colhões” (colhões “do tamanho da arena”, grita um torcedor durante a projeção). É uma masculinidade tão sólida que nem as roupas justas de toureiro, nem um olhar que flerta com o homoerótico conseguem abalar. O medo, então, parece não ter espaço. Roca Rey é como uma superestrela do futebol ou uma celebridade global que, por vezes, parece apenas um jovem narcisista, tão perdido quanto os touros que hipnotiza, controla e mata.

Serra provoca o espectador ao retratar um universo que desafia os valores contemporâneos e deixa em aberto o julgamento moral.

Chega-se, assim, a um ponto em que pouco importam as intenções de Serra. Seu objeto de análise entrega-se a momentos que parecem deslocados em relação à sociedade contemporânea, que tenta construir novos valores. São diversas as situações em que Roca Rey demonstra estar consciente demais das câmeras, do ato performático e de sua própria importância. Nota-se, subliminarmente, o medo de perder a batalha, pois nem sempre é possível prever o golpe do touro. Da mesma forma, tampouco se pode prever a reação das plateias e como a mensagem chegará aos espectadores. Se Serra buscava um olhar de ingenuidade e neutralidade, conseguiu. As imagens estão dispostas e servem aos dois discursos do ringue-pêndulo. E isso é um feito e tanto.

Mais Recentes

Publicidade

Publicidade