X

0 Comentários

Festivais

28º Tiradentes (2025) – Cartografia das Ondas

Entre a vida e a criação: o processo incompleto e flutuante de Heloisa Machado

Por Marcelo Ikeda | 31.01.2025 (sexta-feira)

Elemento típico do cinema contemporâneo, as bordas entre criação e vida ganham outros contornos em Cartografia das ondas, de Heloisa Machado. Um letreiro inicial já abre com o desafio do filme: vivemos para narrar histórias. Aqui, dois amigos (a própria realizadora e o roteirista Gledson Mercês) mergulham num processo de escrita de um roteiro, mas possuem dificuldades para prosseguir devido a acontecimentos da sua vida. Precisam mudar de cidade, trabalhar, criar os filhos… À medida que vivem, os acontecimentos de suas vidas vão contaminando a escritura do roteiro. Estamos então num diapasão totalmente diferente do hibridismo entre ficção e documentário ao molde de filmes como Baronesa (2017), A vizinhança do Tigre (2014) e O céu sobre os ombros (2010). No filme de Machado, o desafio é moldar a escritura de uma narrativa ficcional de contorno até certo ponto tradicional, com a escritura de um roteiro de estrutura clássica, com cabeçalhos, rubricas e tudo o mais. No entanto, a vida vai, de forma inesperada, contaminando a escritura desse roteiro clássico. 

Essas relações ganham outro significado quando percebemos que não se trata de mero dispositivo a priori, mas que o próprio filme foi sendo gestado a partir dessa mesma lógica. Machado pretendia realizar um filme de ficção mas os caminhos inesperados da vida fizeram com que o processo de filmagem se tornasse atribulado, de modo que o filme durou dez anos para ficar concluído. Ou seja, Cartografia das ondas pode ser lido como o processo de gestação de um filme que não foi concluído como inicialmente imaginado, para que as ruínas desse projeto gerassem um outro filme. Gestação: palavra adequada para entrecruzar as relações entre criação e vida propostas pelo filme. Machado gesta o roteiro desse filme do mesmo modo como gesta sua filha Lis, que nasce durante esse longo processo.

O projeto de Machado é um estudo das ruínas do processo de criação, onde o sonho original se transforma ao longo do tempo.

Há, portanto, um filme de ficção dentro do filme, que surge da imaginação dos roteiristas no processo de escritura desse roteiro. Uma prostituta negra (Indira Nascimento) se envolve com um marinheiro (Julio Adrião). Grávida, é levada por Caronte para uma ilha habitada por prostitutas depois que morrem, e onde nenhum homem pode viver. A mulher, então, tem esse dilema de manter seu filho vivo nesse ambiente. O entrecho desse filme-dentro-do-filme me lembra de Ieodo –  Korean Ghost Story (1979), de Choi Sang-sik, um filme sul-coreano misterioso, episódio de uma série de TV, que ganha ares metafísicos em torno de uma lenda local a partir de pescadores tragados por uma ilha habitada apenas por mulheres. Mas no filme de Machado a história é contada pelo ponto de vista feminino, e não de um pescador.

A menina-prodígio que passou tão jovem em um concurso público precisa escolher seu caminho, para poder enfim gestar sua filha e gestar o filme. É preciso, portanto, colher o tempo da espera, da passagem da vida, da sensação de incompletude, de redefinir os cursos da vida e da criação, e mergulhar num processo de autodescoberta que é também parte do desconhecido. Sulcar o ventre para esperar o tempo da colheita: frutificar. Caronte (interpretado pelo professor e cineasta Sérgio Santeiro) ou o Narrador (voz de Antonio Pitanga) são elementos que funcionam como intermediários entre o mundo dos vivos e dos mortos, entre o mundo do real e da criação, ou ainda, entre os criadores-roteiristas e seus personagens. Cartografia das ondas é sobre esse misterioso entremeio, como as ondas de um mar ou o fluido amniótico, que simbolizam o fluxo da vida, o processo de criação e os ritmos indefiníveis da natureza.

Cartografia das ondas explora como a criação surge do equilíbrio entre as urgências da vida e o esforço para completar o que está em gestação.

Viver é narrar. Narrar histórias de outros, que no fundo são histórias de si. Mas aqui não se trata de autobiografias ou de autoficções: a vida interfere na criação não propriamente num espelhamento direto entre a persona do autor e a psicologia de seus personagens, mas o curso da vida promove bifurcações que criam fissuras no próprio ato da criação. Como escrever se não se tem tempo nem para tomar banho? Como escrever se é preciso preencher planilhas? Como escrever em dupla se se está tão distante? Cartografia das ondas examina a relação entre criação e vida jogando seu foco para um antecampo: os criadores, acima de tudo, são pessoas que vivem em um mundo de necessidades concretas, que precisam pagar contas, cuidar dos filhos. O filme é justamente sobre essa lacuna, que o filme tenta preencher, aproximando suas longínquas margens, na medida do possível, mas sempre tendo a consciência de que sua resultante é algo incompleto, parcial, perecível, flutuante e instável. A resultante – o filme, a filha, enfim, a vida – é o acordo de forças possível diante do processo da vida, diante do fluxo das marés, incontroláveis. No fundo, o projeto de Machado é um ensaio sobre o que restou das ruínas de um processo de gestação, em que o projeto original tornou-se rastro de um sonho vivido pelas bordas da urgência da vida. O filme-dentro-do-filme é como se fosse um sonho vivido acordado, como a própria vida. Algo que precisa ser concluído e, como a barca do filho recém-nascido que é devolvido ao mundo dos vivos, num movimento contrário ao de Caronte, precisa sair do seu ventre-papel do imaginado para afinal tornar-se carne, tomar vida própria, e ser afinal expurgado, para fora de si.

Mais Recentes

Publicidade

Publicidade