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Festivais

28º Tiradentes (2025) – Margeado

Entre o luto e a renovação: o caminho de Margeado

Por Marcelo Ikeda | 29.01.2025 (quarta-feira)

Do mar à lama; do luto à vida. Margeado aborda os impactos do rompimento de uma barragem em uma família de uma vila pesqueira. Ainda mais tendo em vista os desastres ambientais de Minas Gerais, o tema ganha proporções ainda mais urgentes. O problema das barragens envolve não apenas o estado de Minas, mas outros, como o Espírito Santo, visto, por exemplo, o ocorrido em Baunilha, Colatina, em 2022. Margeado investiga esse impacto mas não do ponto de vista das origens do conflito ou pela perspectiva macropolítica mas a partir de uma família que se desestrutura em decorrência da tragédia. O drama ganha proporções mais profundas com a morte da matriarca – Iara (Verônica Gomes), que domina o primeiro quarto do filme, numa morte simbólica em que ela é tragada pelo mar que se transforma em lama, uma linha limítrofe que demarca os limites entre a vida e morte – e, no segundo bloco, pela morte do pai (Antônio Pitanga). Órfão, o personagem chega a uma terra estranha buscando não apenas velar o pai mas reconectar o rumo de sua vida a partir das ruínas desse passado não assimilado. Velar o pai; velar o rio – Margeado é guiado pelo tempo do luto, um filme cerimonioso e solene sobre as possibilidades de prosseguir o curso da vida diante da morte. Dingue é um rio: assim como o rio, Dingue (na bela performance de Danilo Andrade) tenta seguir seu rumo natural diante da indiferença do mundo.

Mas Margeado não é um filme de denúncia macropolítica nem tampouco um melodrama sobre o luto. O que no fundo Zon procura compartilhar com o espectador é promover um reencontro com outro modo de ser, com o tempo da vida fora da loquacidade e aceleração dos centros urbanos e da lógica da competitividade e eficiência do capital. Assim, a grande protagonista de Margeado é a natureza – o tempo da natureza e sua geografia não apenas física mas como espaço humano que preenche os modos de ser. Assim como a lama invade os rios, ela transborda pelo rompimento da barragem e chega até o mundo. As máquinas rasgam o espaço natural, por meio de motos, carros, ônibus, tratores. Um senhor empilha objetos numa loja de concertos de equipamentos quebrados. O som das máquinas sufoca o canto dos pássaros, até o momento que Dingue abandona sua moto e se refugia no que ainda restou de sua família partida. O reencontro com a família partida após a morte dos patriarcas funciona ao final quase como o fim de Intendente Sansho (1954), de Kenji Mizoguchi. E a família poderia ser de negros pescadores ou de camponeses libaneses. Ambos são refugiados esquecidos pelos sistemas hegemônicos de poder e pelo grande capital – mas ainda assim resistem, juntando os cacos possíveis por meio de uma afetividade ainda que precária.

Cartaz oficial

Margeado não se apresenta como filme de denúncia em torno de pautas ambientais urgentes mas, em vez disso, opta por expressar sua vocação transcendente por meio de uma estética da delicadeza, em que o desejo por um cinema de atmosferas sutis em torno de um clima de sugestão e rarefação prevalecem sobre a estrutura macronarrativa e a composição psicológica dos personagens. Sem nenhuma pressa, Zon costura à mão uma poética muito particular, que parece nos fazer imergir num outro tempo. Assim, Margeado parece um corpo estranho no cinema brasileiro de hoje, tão preocupado em refletir seu tempo histórico com tamanha urgência. O tom poético de Margeado talvez o faça se aproximar de filmes como Arábia (2017), de Affonso Uchoa e João Dumans, ou mesmo de Estrangeiro (2018), de Edson Lemos Akatoy. Mesmo diante da tragédia, Margeado expressa a visão de mundo dos vitimados mas sem espetacularização da barbárie mas em como os modos de vida dos humildes trabalhadores permanecem ainda assim, em como é possível permanecer humano diante da tragédia e da indiferença do Outro.

Nesse sentido, Margeado parece quase um filme eslavo ou da Europa Oriental, no sentido de promover uma cosmologia das transformações do interior rural e da improvável manutenção de outros modos de ser, por meio de um formalismo não realista. Apesar de muito fincado na terra do seu tempo presente, Margeado foge completamente de uma vocação documental ou mesmo realista. É impressionante como, num primeiro filme, Zon realiza um filme de complexa mise en scène, com planos alongados que impressionam pela extrema beleza, poesia e precisão especialmente dos seus movimentos de câmera. O desafio formal de Margeado está em integrar de forma orgânica o desejo de respirar essa poesia do escorrer do tempo comum com a orquestração de uma escritura fílmica rigorosa e precisa. Ou seja, em fazer o filme respirar o tempo da vida ao mesmo tempo que o integra em meio a uma escritura formal controlada. Talvez seja possível dizer que em alguns momentos essas apostas funcionam mais e em outros, menos. Ou ainda ler o tom declamatório do elenco com uma vocação teatral ou até mesmo literária que algumas vezes resvala para o tom explicativo. Me interesso por Margeado muito mais pela construção de uma atmosfera transcendente de sugestão e sutileza do que pelo seu arco narrativo socioambiental. De todo modo, o desafio de construção de uma mise en scène não realista é enfrentado de frente pelo diretor, sem medo dos riscos, sem medo de errar, quase como uma carta de declaração de princípios  – e isso é notável num cinema brasileiro de hoje dominado pelas regras de negócio dos laboratórios e pelos estritos recortes curatoriais. Não me lembro de outro filme brasileiro recente que apresente movimentos de câmera tão expressivos, tão belos, poéticos e, ao mesmo tempo, precisos – sem soar ostentatórios ou vazios. Mesmo nas suas imperfeições, Margeado é prenhe de um desejo poético pela vida e pelo cinema. Mesmo diante do luto, é preciso permanecer se deliciando com o gosto das goiabas tiradas do pé, enquanto o solo ainda sobrevive colhendo frutos. Do rio à lama, da morte à vida, os movimentos de Margeado podem parecer deslocados ou anacrônicos no tão pragmático circuito da vida e do cinema dos nossos tempos – e esse parece ser o principal gesto de Margeado dentro do cenário do cinema brasileiro pós-crise.

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