28º Tiradentes (2025) – Um Minuto…
Marcelo Ikeda escreve sobre “Um Minuto É Uma Eternidade para Quem Está Sofrendo”
Por Marcelo Ikeda | 29.01.2025 (quarta-feira)
A princípio, é possível ver Um minuto… como um diário escrito por Wesley Pereira de Castro (WPC) sobre os seus dias durante a pandemia. Assim, o filme se integraria às escritas de si, como um documentário em primeira pessoa. Passado na pandemia, o personagem estaria enclausurado em sua própria casa, lutando em sobreviver e manter sua saúde mental. Manter a sanidade diante do vazio da vida – WPC chegou a comparar o filme com Tarnation (2003), de Jonathan Caouette, até mesmo pelos conflitos psicológicos do diretor que se filma em primeira pessoa por meio de uma estética precária e urgente.
Já pelo título, já pelos minutos iniciais, Um minuto anuncia o sofrimento de um personagem que pensa em se matar. Enquanto isso, teima em resistir encontrando pequenos motivos para prosseguir: ler um livro ou ver um filme desafiador, alimentar os animais no quintal, lavar a louça, o que seja! Não há um projeto ou objetivo de maior importância a nível macro mas WPC busca os motivos para continuar vivendo, dia após dia, um dia de cada vez. E, nesse sentido, talvez o cinema ou a produção de imagens seja uma forma de permanecer resistindo, de continuar vivendo. Nada mais.
Tenho receio que Um minuto seja reverenciado por motivos muito aquém de sua complexidade. Diante da possibilidade de desistir, WPC inventa um personagem de si, sorri diante do abismo, promove um jogo com sua autoimagem. Se à primeira vista, tudo parece resvalar para um narcisismo autocelebratório, na verdade essa encenação de si é uma estratégia discursiva para continuar resistindo. Exibir-se como último refúgio para continuar existindo: expor-se como ato de desespero, pois é tudo o que se tem. Um minuto é um filme muitas vezes engraçado e divertido, que dialoga com a estética das redes sociais, das selfies e do TikTok, mas, na verdade, nada poderia ser tão antípoda à cultura desses meios. WPC não quer ir ao BBB, mas exibe sua precariedade sem receio de desagradar, trafega pelas profundezas de si para mostrar-se em carne e osso, em sangue e alma, sem medo dos julgamentos e dos juízos de valor. Um minuto é um pequeno tratado profundamente kierkegaardiano – profundamente engajado nessa experiência divina e profana de viver o mundo a partir de cada instante, a cada dia em toda a sua terrível fugacidade, em abraçar o mundo de si em torno de toda a sua potência e também de sua fragilidade, diante de tanto tremor e êxtase, diante de toda a paixão e desespero. Talvez sejam as pequenas epifanias de um cotidiano precário que façam o personagem continuar – e quem sabe, desistir de desistir. Os desafios da escrita de WPC em Um minuto me parecem muito análogos com o projeto de cinema de Marcus Curvelo – até mesmo em seu humor irreverente que, por trás de sua leveza, expressa seu desencanto, sua completa inadaptação ao mundo e sua pulsão de morte. Em um texto anterior sobre Mamata (2017), eu já havia comentado que “Talvez o humor (ou o cinema) seja uma forma de lidar com o desespero”, comentando as únicas duas cartelas do curta de Curvelo (“Filmar para não morrer” e “Eu desisto”).
O cinema em primeira pessoa então se utiliza de artifícios aparentemente próximos ao narcisismo das redes justamente para desconstruí-lo. WPC promove uma extremamente consciente performance de si, dialogando com recursos do cinema em primeira pessoa, como a autoficção e a performatividade. A pandemia estimula o clima de clausura claustrofóbica, em que o filme mergulha no interior de si. A relação entre criação e vida atinge um contexto em espiral complexo. Fico também pensando em relações com O dia da posse (2021), de Allan Ribeiro, em que diretor e personagem convivem durante a pandemia. Mas WPC não quer ser Presidente da República, quer simplemente sobreviver. É duro como WPC mostra a precariedade de seu entorno, seja a precariedade de sua saúde mental quanto o próprio contexto socioeconômico em que ele está imerso. E aqui é preciso assinalar esse contexto. WPC é também um produto dos governos Lula, que forneceram uma possibilidade para pessoas periféricas de ingressar na Universidade e viver de pensamento-arte-cultura (Wesley é um crítico de cinema reconhecido em todo o país e mestre em Comunicação com dissertação sobre o cinema brasileiro, ainda mais raro dadas as assimetrias de um estado periférico como Sergipe), mas essa possibilidade, ainda que uma grande conquista, não é garantia de nada, não necessariamente assegura uma vida melhor. É possível ver o ambiente fragilizado em que Wesley vive com sua mãe em uma casa de reboco na periferia de Aracaju, em que falta água, saneamento estável e por vezes até comida. É muito duro quando Wesley recebe um livro sobre a história da crítica de cinema, e vê seu nome como autor de um capítulo, para, em seguida jogar o livro fechado na cama. Grande conquista mas no fundo que diferença faz? Quem se importa? Mas Wesley nunca reclama dos outros ou se vitimiza, ele procura simplesmente viver dia após dia, um dia de cada vez.
Por fim, é preciso perceber que Um minuto é um filme feito em parceria, entre WPC e Fábio Rogério. O filme também é sobre essa longa amizade entre dois sergipanos que buscam sobreviver na selva de vaidades egocêntricas do mundo do cinema. A estética da fome. A aposta radical na precariedade como potência. A relação umbilical entre criação e vida. Viver sem medo dos riscos e das inevitáveis polêmicas que irão surgir quando você se arremessa no mundo com coração e desejo. Viver e filmar é se expor. Expor-se à luz – um motivo cinematográfico – mas também expor-se às sombras. Seria Um minuto… um filme expressionista kierkegaardiano filmado na periferia de Aracaju – uma provocação rs? Um minuto é uma parceria que funciona não apenas como “aliança estratégica” mas uma amizade de mais de uma dezena de anos, baseada numa relação de confiança mútua. WPC entregou esse material diário a Fábio que foi costurando com Wesley seus possíveis significados e implicações. Filmaram durante muitos anos – e foi fundamental essa confiança mútua ética, em que também era possível deixar de lado muitos outros aspectos que poderiam culminar numa espetacularização – a iminência do suicídio, questões familiares, etc. A presença ética de Fábio Rogério é que garante ao filme esse equilíbrio entre olhar de dentro e abraçar a uma certa distância possível. A montagem do filme – genial – mereceria uma análise à parte. Fábio Rogério teve a missão de coletar uma miríade de fragmentos heterogêneos e conferir uma certa unidade e ritmo ao filme no formato de longa-metragem. Não seria exagero se dissermos que Um minuto… dialoga com os princípios da montagem nuclear de Sergei Eisenstein: é uma coleção de retalhos ou de fragmentos de momentos de autoencenação para formar uma “unidade desorganizada”, por meio de oscilações rítimicas que transitam entre leitmotifs do todo (os animais, o diário, o pênis, etc.) e instantes de potência de fragmentos do singular. A organicidade dessas combinações é notável e confere ao filme a sua força particular.
Este filme é dedicado a Jean-Claude Bernardet e a mim – algo coerente não apenas pela contribuição dessas duas pessoas aos estudos de cinema, mas por uma relação de amizade pessoal que vai além do cinema. Alguns (o próprio Fabio) me recomendaram a não escrever sobre esse filme por essa questão ética. Como examinar criticamente um filme a que se é dedicado? Mas não posso deixar de escrever sobre esse filme justamente me assumindo nesse fio da navalha – assim como foi, há muitos anos atrás, sobre o Coletivo Alumbramento, assim como o foi no meu livro Fissuras e Fronteiras. Escrever sangrando; escrever implicado; filmar e viver sangrando e implicado. Um minuto… é um autêntico cinema de garagem. A coragem desse filme transborda os manuais de correção. Tenho receio de que esse filme seja visto apenas por sua superfície do humor irreverente quando no fundo também é um exame complexo e crítico, sobre os diversos paradoxos de nossa sociedade e também do nosso cinema. Um minuto… é mais um elemento que contribui para a escritura de um cinema autenticamente popular do cinema brasileiro. A diferença de WPC para Curvelo ou para o Alumbramento é que claramente Wesley não é um branco de classe média. Ele é um estrangeiro no nosso mundo, e inclusive estrangeiro do que se espera de um “homem da periferia”. Resta saber se o campo do cinema brasileiro vai abraçá-lo ou cuspi-lo. Por isso, eu não poderia deixar de me manifestar sobre esse filme, porque ele abre um campo potente e maravilhosamente perigoso dentro dos discursos de legitimação das periferias na arte brasileira contemporânea – e isso passa por dentro de sua própria escritura, assumidamente pobre e frontal. É preciso ver Um minuto – avesso completo de Ainda estou aqui (2024) – sobretudo como um filme político.
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