Conclave (Texto #2)
Edward Berger traz à tela a luta ideológica e a incerteza em torno da eleição do novo Papa
Por Humberto Silva | 16.01.2025 (quinta-feira)
O diretor alemão Edward Berger, depois da adaptação remake de Nada de Novo no Front (2022), dá bem o sentido da internacionalização do cinema em nova adaptação: Conclave, do romance escrito pelo britânico Robert Harris publicado em 2016, uma produção do Reino Unido e dos Estados Unidos. O assunto expresso explicitamente no título: a escolha de um novo Papa com a vacância do sólio pontifício (o trono papal). Um destaque como ponto de partida: Harris é um prestigiado escritor de best-sellers voltados para a ficção histórica e afinado ideologicamente com os Liberais Democratas, o LD.
O porquê do destaque? É ingênuo tratar de um filme baseado em livro de um autor de origem inglesa com foco em um evento crucial para a Igreja Católica – a escolha de um novo Sumo Pontífice – desconhecendo sua filiação ideológica. Ora, sabendo de sua posição no espectro político pode-se ter no horizonte, suponho, a caracterização dos personagens, tanto quanto a condução da trama. Portanto, o que o escritor efetivamente visa com sua narrativa. Tanto mais quando se tem um liberal de um Reino Unido anglicano frente à Igreja Católica.
Passo então a um segundo destaque, com visor na internacionalização. A obra de um escritor inglês adaptada para o cinema e dirigida por um alemão originário da luterana Baixa-Saxônia. O porquê novamente do destaque? Berger, como revelou com Nada de Novo no Front, é dotado de disposição para enfrentar temas que despertam posições antagônicas: aqui, exibir sem meio termo a “covardia” do generalato alemão na assinatura do armistício que pôs fim à Grande Guerra não deixa de ser, para muitos, perturbador (lembrando: o livro de Erich Maria Remarque não trata dos bastidores das negociações que puseram fim à guerra).
Mas agora com Conclave Berger cruza a fronteira e instala-se no Vaticano. Eu ignoro os vínculos ideológicos dele, onde ele se situa no espectro político? Por isso, para além de interesses profissionais num momento de internacionalização do cinema, ficam para mim no ar as razões para ele aceitar dirigir um projeto britânico/norte-americano com locações nos estúdios da Cinecittà sobre assunto tão melindroso religiosa e politicamente.
Esses destaques, obviamente extra fílmicos, visam a atentar para o fato de que um filme como Conclave pode ser visto sem qualquer problema como mero entretenimento, de uma maneira totalmente desinteressada, absolutamente descompromissada, com um olhar na espetacularização visual, no apuro estético, na força dramática nas interpretações, sem qualquer má-consciência com respeito ao tema abordado e que assim possa muitas vezes gerar tão só “conversas inteligentes” em ambientes sociais.
Vejamos. Conclave, literalmente, é uma palavra quem vem da expressão latina cum clavis, significando fechado à chave. Há oito séculos a expressão nomeia o rito que se repete para a escolha de um novo Papa quando o trono papal fica vacante. Então, quando isso ocorre realiza-se no Vaticano uma assembleia de cardeais regida por rígidas regras durante a qual eles se isolam do mundo exterior para evitar pressão até que cheguem à escolha. No início do conclave os cardeais fazem juramento de silêncio. Assim sendo, devem manter segredo sobre tudo que tiver relação com a assembleia, sob risco de excomunhão.
Livro e filme, nesse sentido, por mais que guardem verossimilhança com respeito às disputas pelo poder, maquinações, diferenças entre as visões tradicionalistas e progressistas, ambições pessoais (enquanto padrão nenhuma diferença nas disputas fechadas em qualquer escolha, como a de um Oscar por exemplo), são construções ficcionais, ilusórias em decorrência. Mas, justamente por isso, na caracterização de personagens em cena e condução da trama, uma (entre outras) perspectiva externa à hermética decisão dos cardeais.
Conclave, com isso, exibe menos o que seria, de fato, um conclave do que especula sobre como esse evento pode ser visto pelas mais diversas segmentações ideológicas externas à Igreja Católica (um escritor tradicionalista contaria outra história…). Daí, para mim, a importância de se saber onde Robert Harris se situa no espectro ideológico e problematizar sobre os motivos que levaram Edward Berger a entrar num projeto que faz de seu livro uma obra cinematográfica.
Com efeito, Conclave exibe entre os principais concorrentes a novo Papa um cardeal liberal norte-americano, um nigeriano conservador social, um moderado canadense, um tradicionalista italiano e um mexicano missionário em zonas de guerra que chegou à assembleia de última hora e sob suspeita de que não teria sido nomeado cardeal pelo Papa morto… (ele seria Arcebispo da Cúria em Cabul, Afeganistão…; por conseguinte, nesse personagem o uso de liberdade criativa na ficção).
Essas escolhas de nacionalidades, por certo, não são gratuitas, assim como não é gratuito o resultado final com a surpreendente escolha do novo Papa. Conclave, como convém à narrativa cinematográfica que objetiva prender a atenção do espectador, assume o viés de um thriller. A trama é conduzida, portanto, de modo a que se crie expectativa quanto ao desfecho. Com isso, o filme assume ares de perquirição sobre aspectos escondidos na vida pessoal de cada um dos candidatos.
A narrativa, efetivamente, é direcionada de modo a que o espectador, a partir de suas próprias crenças, se identifique mais ou menos com um cardeal liberal, um progressista ou um tradicionalista. Esse direcionamento narrativo de Conclave, assim me parece, equilibra bem as etiquetas de identificação ideológica no tabuleiro de poder e sutilezas que revelam enormes conflitos entre a dimensão espiritual, os dramas de consciência, as vaidades pessoais e o pragmatismo exigido pelo mundo vivido.
De sorte que Conclave foi concebido com acento no jogo sutil entre zonas obscuras e fachos de luz com iluminação esfumaçada. Creio que esse jogo expressa bem, como metáfora, a enorme dificuldade externa para se ter precisão sobre o que, de fato, ocorre em um conclave. “Ter Fé é praticar o exercício da dúvida. A certeza absoluta entra em choque com a Fé”. Assim declara o camerlengo, o cardeal responsável pela condução do rito que leva à escolha papal.
O filme, e em decorrência a escolha do novo Sumo Pontífice, se move por meio dessa premissa. Se a dúvida afirma a primazia da incerteza, Conclave exibe para o espectador um intrigante paradoxo: numa escolha a portas fechadas pode acontecer o que externamente seria impensável; mas justamente por isso o impensável na escolha do Papa como exibido no filme é tão só o exercício da dúvida: como a escolha se deu é algo a que o mundo externo à Igreja Católica jamais saberá. Resulta disso que, com indisfarçável visada de metalinguagem, Conclave mostra que o que se vê pode ser posto sob suspensão.
A afirmação do camerlengo é crucial para externamente o espectador entender Conclave e seu desfecho. Agora, a querela Fé versus Razão (certeza), contudo, não se resolve no proferimento de um cardeal. Para a Igreja Católica não há dúvida de que a escolha do Papa não se faz pela soma de votos e sim pela presença do Espírito Santo no cardinalato. Mais, Conclave não exibe, e acho vale realçar, o princípio da infalibilidade papal: Roma locuta est, causa finita est.
“O Papa falou, assunto encerrado”, declarou Santo Agostinho no Sermão 131,10 a respeito da controvérsia pelagiana sobre o pecado original. Na ocasião, no ano 417 d.C., o Papa Inocêncio I encerrou o assunto.
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