Trilha Sonora Para Um Golpe de Estado
Jazz, poder e conflito
Por Humberto Silva | 30.01.2025 (quinta-feira)
Trilha Sonora para um Golpe de Estado é um dos concorrentes deste ano ao Oscar na categoria documentário. Não é o caso de lembrar o pouco espaço midiático que granjeia um documentário frente ao que o público em geral reconhece como um filme: uma obra de ficção que conta a história… Nem é o caso, igualmente, de lembrar que a fronteira para separar em prateleiras distintas ficção e documentário é convencional: flutua ao sabor de embates teóricos ao longo do tempo (cada época e seus “especialistas” para demarcar a fronteira).
Fazer qualquer documentário circular além do circuito fechado de aficionados, adoradores, cinéfilos, estudiosos, ou seja, bolhas ansiosas e atentas a novidades no vastíssimo mundo do cinema é, para a aludir a dito bíblico, um feito similar a mover montanhas: só Moisés para tal feito. Há muita Duna 2…,3,4… no caminho. Escrevo, então, sobre Trilha Sonora… com a expectativa otimista de que, mesmo na lista de oscarizáveis deste ano, despertará interesse disperso, localizado aqui, ali, acolá, alhures (para a própria estratificação da Academia, documentário recebe um prêmio coadjuvante).
Torço para estar exagerando, por estar sendo, pode ser, exageradamente precipitado. A precipitação é, logicamente, fonte de erro, de equívoco, dada a volatilidade de impulsos sem respaldo na razão. O exagero, retoricamente, pode ser um ardil, um apelo, uma maneira de chamar a atenção para o que damos importância, mas que não percebido impõe a exortação. Esta pode estar condenada ao fiasco, no entretanto, a sorte é lançada…
A mensagem de Trilha Sonora… é curiosamente intemporal. Feito hoje, recorta o início da década de 1960 (trata do uso de músicos de Jazz por órgãos do Estado, no caso a CIA, como instrumentos de propaganda ideológica no contexto de descolonização da África no auge da Guerra Fria), mas diz muito nos dias que correm sobre o uso político e vínculo promíscuo de artistas no entorno do poder: o bolsonarismo de mãos dadas com o Sertanejo é, obviamente, o que tenho em mente.
O assunto de Trilha Sonora…, portanto, atravessa os tempos, carrega questões espinhosas e coloca artistas num caldeirão mexido por interesses estranhos à arte. À esfera do poder, artistas já celebrados alcançam altura estratosférica em suas vaidades pessoais. Há camadas, camadas e mais camadas nas questões que são suscitadas dessa maçaroca. Por isso, quando a situação se apresenta, o imbróglio para julgar e separar o valor de uma obra em si – no Jazz, no Sertanejo… – e as motivações de artistas para se permitirem “ingenuamente” ser usados para promover esta ou aquela prática política (tenho presente a diferença óbvia entre ser meio para um fim e o engajamento: Bertolt Brecht foi um dramaturgo livremente engajado, em termos sartreanos).
De modo que Trilha Sonora… lida com o desafio de exaltar o Jazz ao mesmo tempo em que exibe músicos, com destaque para Louis Armstrong, que se deixaram “encantar” como porta-vozes do imperialismo norte-americano (a biografia de Armstrong não conta sobre seu eventual engajamento à causa racial como conta, por exemplo, a de Miles Davis). Ora, as intenções dos realizadores de Trilha Sonora… podem ser as “melhores” (desconheço as posições políticas do diretor, o belga Johan Grimonprez, ainda que suspeite…), mas também podem gerar desconforto entre aficionados por Jazz. Decerto, a condução de Trilha Sonora… flui de modo a ficar sob suspensão um pedido de desculpa por “ingenuidade”, o que, de fato, também apequenaria alguém com a estatura de um gigante como Louis Armstrong.
Sim, há nuances; exibe-se na mesma medida que jazzistas tão celebrados quanto Armstrong não compactuaram com interesses que maculariam suas imagens (o baterista Max Roach e a cantora Abbey Lincoln). Mas o que se acaba tendo ao final são flashes que não precisam como, efetivamente, resistências e compactuações se deram. Ao espectador importa, em decorrência, dar conta de que o Jazz – na impossibilidade de se apreender o nível de envolvimento de um artista em especial na ordem dos acontecimentos políticos – naquele momento não foi, certamente, mero entretenimento para consumo cultural.
Um dos alvos do documentário dirigido por Grimonprez é, dessa forma, o envolvimento de consagrados músicos de Jazz com a CIA no turbulento contexto da Guerra Fria. Um outro alvo é aquele no qual, paralelamente, Trilha Sonora… mostra o processo de independência do Congo, colônia belga, conduzido pela liderança de Patrice Lumumba. O que, assim me parece, salta aos olhos em Trilha Sonora…? É como estabelecer nexo; ou seja, ligar pontos que soam dissonantes: Jazz e CIA de um lado e independência do Congo de outro.
Reconhece-se no Jazz o improviso, com o improviso a incerteza, o inesperado, que pode assumir a feição de caos. Suponho que nessa imagem do Jazz o que impulsionou Grimonprez a ver o ritmo dos acontecimentos que levaram à independência do Congo, tendo Lumumba à frente daquele processo e, com ele, as inesperadas viradas no cenário político congolês. A sucessão de imagens em contraponto, de personalidades políticas que entram em saem de cena (Dwight Eisenhower, Nikita Khrushchov, Fidel Castro, Malcolm X…), retornam, se excedem, transbordam freneticamente com a batida da bateria de Max Roach e a voz de Abbey Lincoln.
Temos então um documentário cuja “história contada…” cadencia a entrada de personalidades centrais no caldeirão político da Guerra Fria tanto quanto faz despontar cenas de tensão e violência em sintonia com a batida do Jazz. Inegável realçar o trabalho de montagem realizado por Rik Chaubert. Sons, imagens, letreiros se enovelam a ponto de se perder o foco de atenção. Ao despontar a imagem de Joseph Kasa-vudu, a legenda em letras garrafais que se repete a cada aparição: Presidente da República do Congo (1960-1965). O mesmo se dá com a imagem de Allen Dulles: Diretor da CIA (1953-1961).
A utilização desse recurso, acredito, nos torna presentes nomes que provavelmente hoje são esquecidos, mas não deveriam; daí, consequentemente, a insistência em letreiros garrafais a cada aparição. Em conluio com a CIA, Kasa-vudu foi acusado de envolvimento no assassinato de Patrice Lumumba. Mas a grande importância advinda pela realização de Trilha Sonora… consiste, para mim, em por luz sobre – pois talvez não tão lembrado hoje – Patrice Lumumba. Figura-chave no processo de descolonização da África, ícone para movimentos negros nos USA e no Brasil nos anos de 1960 e 1970, catalisou debates sobre os rumos que o continente africano poderia ter com a defesa do ideário pan-africanista.
Tendo a batida frenética do Jazz como contraponto, numa alternância constante entre forma e fundo, a grande importância de Trilha Sonora… está em nos propiciar conhecer um tico do trajeto turbulento e trágico de Patrice Lumumba. O lado chato, torço para errar, é que por não conter a espetacularização de uma biografia ficcional tão poucos darão por ele.
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