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75º Berlim (2025) – O Último Azul
O futuro é o que você quiser que ele seja
Por Luiz Joaquim | 18.02.2025 (terça-feira)
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Num futuro próximo, em algum lugar na região amazônica, Tereza, 77 anos, está voltando para casa do mercado e encontra a entrada de sua modesta residência, feita de madeira, ladeada por duas palmas gigantes: um dos símbolos no brasão do governo federal brasileiro. Acima da porta está o próprio brasão.
Sem entender o que está acontecendo, ela e nós logo vamos descobrir que a senhora está sendo homenageada pelo governo brasileiro com uma medalha pelos serviços prestados à nação e que, em breve, ao completar 80 anos, deverá ir compulsoriamente para uma colônia habitacional.
O programa do governo, com isso, quer otimizar a labuta dos não-idosos, incrementar a produtividade do país, eximindo os trabalhadores das obrigações de cuidar de pais ou avós octogenários “improdutivos”. Nesse sentido, a “marca do governo” na residência de Tereza é algo que remete ao distintivo judaíco utilizado pelos nazistas não apenas para identificá-los e humilhá-los, mas também servindo como elemento segregador.
Com a notícia de que o governo está antecipando o retiro para aqueles a partir de 75 anos, Tereza (Denise Weinberg), saudável e determinada a realizar o sonho de uma vida, decide que não irá para a colônia até resolver as contas consigo mesma e com o seu sonho.
Está dado o novo cenário distópico futurístico do cineasta pernambucano Gabriel Mascaro após o provocador Divino amor (2019). Com O último azul (The Blue Trail, Bra./Chi./ Mex./Países Baixos, 2025) – cuja estreia mundial aconteceu domingo (16) às 11h30 (horário brasileiro) no Berlinale Palast, em competição pelo Urso de Ouro no 75º Festival de Berlim -, Mascaro mantém a força da provocação que vemos no filme anterior contra uma sociedade definidora de certezas.
No novo filme, entretanto, o cineasta ajusta esse atrito a uma lampejo de esperança a partir da improvável trajetória de Tereza.
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Rachel, Miriam, Santoro e Mascaro recebendo aplausos no Berlinale Palast.
Uma das inteligências de O último azul é resolver-se visualmente com poucos elementos que remetem ao futuro. É bom que equipamentos tecnológicos não estejam em primeiro plano nesta história cujo interesse é escancarar a estupidez de governos ultrarreacionários. Nada mais atual em 2025.
Não que a produção de Rachel Daisy Ellis, ao lado do uruguaio Sandino Saravia Vinay (de Roma), não capriche nesses símbolos tecnológicos – a “bíblia digital” é uma bela sacada -, mas Mascaro, co-assinando roteiro com Tibério Azul, está interessado é no absurdo da leitura de um país cuja ideia de progresso está em segregar idosos em nome do desenvolvimento econômico.
E com O último azul, na mesma medida em que vamos testemunhando a beleza das descobertas e êxitos de Tereza chegando ali ao final de sua jornada, vai também ficando cada vez mais escancarada a estupidez dos planos do governo para os idosos.
A frase “O futuro é para todos” que tremula na flâmula gigante puxada por um pequeno avião no céu, ali no início do filme, é uma ironia fina. Naquele futuro perfeito para o progresso da nação que é estabelecido pelo governo federal, os velhos não existem, ou até podem existir, se dissociados e isolados do mundo.
Ainda sem acreditar no que a lei lhe estabeleceu, e temendo ser caçada pelo “cata-veio” – uma motocicleta com uma gaiola atrás, para capturar os idosos fujões de sua obrigação civil de ir para a colônia -, Tereza questiona para a amiga no trabalho: “Mas o que é que o governo tem a ver com o meu querer [de não ir para a Colônia]?”, para ouvir da colega mais jovem: “Não tem mais espaço para ‘querer’ não”. E aqui, o rosto duro da atriz ajuda na ideia de incredulidade de sua personagem, obrigada a se submeter ao absurdo.
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Tereza (Winberg) não quer passar o vexame de andar no “cata-veio”. Crédito: Guilhemer Garza
Ainda que o cenário soe tenebroso, seria de estranhar que um filme de Mascaro não trouxesse seu habitual humor sutil e até uma certa leveza em alguns momentos.
Basicamente levado por quatro personagens, o filme segue Tereza em sua fuga como a protagonista segue o seu sonho. Nesse percurso, por terra ou pelos rios amazônicos, conhecemos o barqueiro Cadú (Rodrigo Santoro), o mecânico Ludemir (Adanilo, de Noites alienígenas e O rio do desejo) e a comerciante fluvial Roberta (a atriz cubana Miriam Socarras).
Cada um, a seu modo, ajuda Tereza a enxergar o mundo por outra ótica. A mais inusitada e bela em sua performance está, certamente, no seu encontro com Cadu. E no que diz respeito a enxergar o futuro por um outro prisma, Mascaro acerta em cheio na analogia criada com o seu “Caracol da baba azul”.
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Santoro. Presença rápida e marcante. Crédito: Guilherme Garza/Desvia
Conforme Cadú. um caracol raro cuja gosma azul pingada no olho vai abrir a sua mente. Atenção para este que é um dos belos momentos de O último azul, deixando evidente porque vale a pena ter Santoro no elenco de seu filme. Sua participação, mesmo pequena, engrandece o filme em sua hipnótica performance.
Já o encontro entre Tereza com a também idosa Roberta cresce rapidamente em função de uma empatia mútua. Ambas são vítimas do sistema. Sistema cretino que, claro, também se dobra e negocia a liberdade de idosos endinheirados.
Para além da luta contra o sistema, ambas começam a nutrir um carinho que, sabiamente, Mascaro não desemboca para aspectos sexuais. Pelo que temos concretamente em O último azul, vermos um relacionamento amoroso e ponto. Um encontro de almas. O desejo de olhar para aquela nova fase na vida de Tereza como uma experiência em torno da sexualidade vai de acordo com os olhos de cada espectador.
A amizade que nasce entre as duas é um – conforme diz a letra de Chico Buarque na voz de Betânia em Rosa dos ventos (nos créditos finais) – perceber que “Amanheceu o espetáculo como uma chuva de pétalas” e saber que “O leito do rio fartou-se e inundou de água doce a amargura do mar”.
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“Inundou de agua doce a amargura do mar”, cena de “O Último Azul” – Crédito: Guilherme Garza/Desvia
A sugestão é sempre mais sedutora que a afirmação e, assim, o filme concorre em Berlim não apenas ao Urso de Ouro de melhor filme e ao Urso de Prata de melhor roteiro, mas também ao Teddy de melhor filme. O Teddy é o troféu dedicado a títulos com temática lgbtqiapn+.
Como se não bastasse, Mascaro ainda faz também crescer a tensão numa outra direção, em torno da luta de dois peixes ornamentais: o Via-láctea e o Pimenta do diabo. Como numa briga de galo, um dos dois não sairá vivo, assim como também pode sair fatalmente ferida a nossa heroína Tereza.
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Coppola, Mascaro. 2010. Foto de Maeve Jinkings
Se o leitor duvida que ficará tenso por conta de uma briga de peixes, veja O último azul. E o melhor, mais uma vez, com tudo captado por uma opção cinematográfica que remete à simplicidade de imagens dos primórdios do cinema. Impossível não lembrar de O selvagem da motocicleta (1983), de Coppola. Será que o poderoso chefão sopro algo para Mascaro naquele encontro entre, há dez anos, quando entregou o prêmio de melhor diretor por Boi neon no Festival de Marrakesh?
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