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Críticas

O Brutalista

A alma do concreto

Por Yuri Lins | 24.02.2025 (segunda-feira)

Fugindo da Europa devastada pela guerra, o arquiteto húngaro László Toth (Adrien Brody) chega aos Estados Unidos em busca de recomeço. No entanto, depara-se com as cruéis realidades enfrentadas por imigrantes: fome, trabalho árduo, preconceito e humilhações. Mesmo assim, ele mantém viva a esperança de reunir-se com sua esposa, Erzsébet (Felicity Jones), e construir uma nova vida ao seu lado na terra das oportunidades.Sua chance surge quando Harrison Lee Van Buren (Guy Pearce), um burguês fascinado pelas artes como símbolo de status, o contrata para construir um monumento em homenagem à sua mãe recém-falecida, projeto que, para László, vai além de uma obra arquitetônica, representando a chance de restituir seu ofício, consolidar seu nome e, finalmente, reunir-se com Erzsébet. No entanto, a ambição de ambos revela contrastes profundos: László, técnico e artista, busca criar algo duradouro e significativo, enquanto Harrison vê no talento do arquiteto uma forma de associar seu nome ao bom gosto moderno e reforçar seu status, desenvolvendo-se, ao longo de quase três décadas, uma relação marcada por interesses, contradições e violência.

O sonho americano: uma ilusão que desmorona diante da exploração e da indiferença.

Desde os primeiros rumores que antecederam sua estreia, O Brutalista (EUA, 2024) já se anunciava como uma obra grandiosa. No tom de um release for your consideration, a mensagem é direta: “Isto é cinema à moda antiga”. Filmado em película 70mm e em VistaVision – formato de alta resolução dos anos 1950, concebido para impressionar pela amplitude e riqueza de detalhes –, o filme exibe com orgulho suas 3 horas e 45 minutos de duração, incluindo uma pausa de 15 minutos. Durante esse intervalo, a tela exibe uma cartela estilizada com a palavra Intermission, evocando os grandes clássicos de Hollywood que concediam ao público um momento de respiro antes de prosseguirem suas aventuras. Tudo parece meticulosamente calculado para marcar posição: ao adotar um formato clássico e rejeitar as convenções do cinema contemporâneo – seja o domínio do digital e das franquias, seja a lógica arthouse dos festivais –, O Brutalista se apresenta como um sobrevivente de uma arte em extinção. Em meio ao panorama viciado de Hollywood, ostenta sua realização como um ato de resistência.

Da mesma forma, a escolha do tema segue essa lógica. O Brutalista busca se inserir na tradição do grande drama e do épico americano, remetendo a filmes como O Cavalo de ferro (Ford, 1924)  …E o Vento Levou (Fleming, 1940), Os Melhores Anos de Nossas Vidas (Wyler, 1946), e Terra dos Faraós (Hawks, 1955) , além de obras que retratam a experiência de imigrantes em solo estadunidense, alinhando-se a clássicos como O Imigrante (Chaplin, 1917), América, América (Kazan, 1963),  O Poderoso Chefão 2 (Coppola, 1974) e Era Uma Vez na América (Leone, 1984). – histórias que retratam a jornada de imigrantes fugindo das ruínas do Velho Continente para em uma terra mais promissora Esses personagens carregam consigo não apenas as cicatrizes de um passado marcado pela guerra, mas também a esperança frágil de um futuro promissor. No entanto, mais do que celebrar a chegada ao “novo mundo”, esses filmes confrontam o idealismo dos recém-chegados com uma realidade dura e implacável, mergulhando-os em um ciclo de desilusão e violência que desmonta o mito do sonho americano. Ao se vincular a essa tradição, O Brutalista não apenas herda o prestígio dessas narrativas consagradas, mas também transforma essa filiação em uma jogada estratégica: ao ocupar um território já legitimado pelo cinema, o filme se apropria da força simbólica e emocional dessa linhagem para acentuar mais ainda sua distinção ao que se consome nos dias de hoje. 

Luta de classes: a burguesia devora o talento e o suor dos desfavorecidos.

Que ninguém se engane: ainda que busque se reconectar ao cinema do passado, O Brutalista reafirma, em cada plano, uma sensibilidade particular. Desde sua primeira cena, o que se vê é a intenção de afirmar um estilo próprio, uma assinatura visual e narrativa que o distancia do cinema ao qual faz referência. Como outros filmes da tradição citada, O Brutalista inicia com a imagem icônica da Estátua da Liberdade vista do convés de um navio – o primeiro vislumbre dos Estados Unidos que os imigrantes contemplam ao atracarem no porto Ellis Island. Uma cena recorrente no cinema, cuja constelação seria capaz de oferecer, por si só, um caminho para a compreender uma fatia importante da história do cinema americano. No entanto, ao contrário da solenidade reverente com que Chaplin ou Coppola enquadraram esse momento, Brady Corbet adota uma abordagem quase abstrata: o protagonista, László Tóth, emerge das sombras do interior do navio, onde a escuridão e a massa de corpos comprimidos formam um obstáculo a ser vencido. A câmera de Corbet acompanha seu avanço de maneira visceral, rente ao corpo, como se fosse uma extensão de seus movimentos ou um companheiro invisível em sua travessia. Quando a última barreira se rompe e a luz do sol inunda seus olhos acostumados à penumbra, a estátua surge abrupta no canto inferior do quadro, vista de baixo para cima, sua forma distorcida pela perspectiva de László – um recorte brusco, um raio rasgando o céu. 

O Imigrante (1917)

O Poderoso Chefão 2 (1974)

O Brutalista (2025)

 

Já na cena inicial, Corbet estabelece sua intenção: explorar a relação intrincada entre os indivíduos e os monumentos que constroem, entre a humanidade e as estruturas grandiosas que buscam deixar como legado. Seus personagens, ainda que limitados por circunstâncias sociais, políticas e econômicas, não abandonam o desejo pelo monumental, por obras que condensam a parte mais pura e elevada de seus anseios. Essas criações vão além da pedra e do concreto; nelas, o artista inscreve sua dignidade — mesmo diante de uma encomenda, ele encontra brechas para imprimir na obra uma dimensão particular, um fragmento de sua essência. Essa busca por significado pessoal, essa necessidade de expressar algo além do utilitário ou do comercial, é o que eleva o trabalho a outra dimensão — uma marca sutil, muitas vezes imperceptível aos olhos desatentos ou àqueles que encomendam a obra por status. É essa essência que confere ao monumento sua verdadeira grandeza.

É justamente essa dimensão particular, esse significado oculto que escapa à compreensão de sensibilidades superficiais, que Corbet utiliza para retratar a experiência do imigrante nos Estados Unidos. László, um homem que enfrenta humilhações, olhares enviesados, traições e golpes baixos, é visto como um pária, um estrangeiro indesejado em um mundo hostil. E é justamente por isso, para manter-se firme e perseguir seu sonho de reunir-se com a família, que ele adota o silêncio como escudo, transformando a palavra não dita em sua maior proteção. Mas é nesse silêncio que László encontra sua revanche. Por meio das camadas de significado oculto que insere em suas obras, acessíveis apenas a sensibilidades atentas, László oferece uma resposta discreta, mas potente, ao sistema que tenta esmagá-lo. A beleza de suas criações vai além da estética; é um martelo contra a injustiça, uma afirmação da dignidade humana em um mundo que insiste em negá-la. Nesse diálogo íntimo entre criador e criação, manifesta-se a dignidade do processo artístico — um ato de perseverança contra a banalidade e o horror dos tempos.

Imprimir no concreto um fragmento de sua alma

Em certo momento, László argumenta que toda obra possui um “core”, um centro do qual todos os alicerces ganham vida. Ao final, O Brutalista deixa a inquietante sensação de que esse núcleo essencial permanece indefinido. Como muitos cineastas americanos contemporâneos, Corbet não está imune a ser produtor daquilo que critica. Todo o aparato técnico e formal ostentatório, embora impressionante, acaba soando acessório, camadas de um artifício que impedem o filme de revelar seu verdadeiro coração. A nostalgia pelo cinema do passado, aqui, parece reduzida a uma idealização superficial, da qual Corbet extraiu apenas o que há de mais exterior e restrito, sem abarcar o que esse cinema realmente trazia de precioso. Afinal, um Edgar G. Ulmer não trabalhava na mesma escala de um David Lean, mas ambos encontravam formas únicas de expressar a humanidade de seus personagens. Faltou a Corbet a principal lição: a modéstia de um olhar atento à dimensão emocional dos personagens e como ela se concretiza em gestos inscritos no espaço e no tempo; noutras palavras, a arquitetura dos sentimentos. Sem isso, O Brutalista acaba como um monumento imponente, mas vazio, que celebra mais a si mesmo do que as vidas que deveria retratar.

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