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Pequenas Coisas Como Estas
As coisas que importam
Por Luiz Joaquim | 27.02.2025 (quinta-feira)
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Perdoem os leitores. Seremos, provavelmente, superlativos nesse texto. Isso porque já há um bom tempo que não vemos um personagem tão sutilmente defendido pela performance de um ator como vemos em Pequenas coisas como estas (Small Things Like This, Irl./Bel./EUA, 2024), dirigido pelo belga Tim Mielants. O personagem é Bill. O ator, Cillian Murphy
Bill é um personagem criado pela escritora irlandesa Claire Keegan, da qual Murphy é fã incondicional. Conta a lenda (e o que fica é a lenda) que, certa vez, o ator viajava de trem enquanto lia Foster, um outro romance de Keegan, e, tocado pelo que lia, cobriu o rosto com o capuz do casaco para esconder as lágrimas.
A historinha do parágrafo acima adianta sobre o quão caro ao oscarizado Murphy seria a adaptação ao cinema do livro Pequenas coisas como estas, cujo romance homônimo, inclusive, foi eleito pelo The New York Times como um dos 100 melhores livros do século 21.
Foi Murphy, estimulado pela esposa, quem buscou recursos para levantar a produção, e encontrou em Matt Damon, seu colega de cena em Oppenheimer, um igual interessado no projeto. Damon logo trouxe para a empreitada o amigo Ben Affleck para ambos assinarem a adaptação como produtores.
No enredo de Pequenas coisas…, estamos em meados dos anos 1980, em algum lugar da Irlanda. Bill é um silencioso e esforçado carvoeiro que tem seu próprio negócio levando sacos de carvão aos clientes no seu velho caminhão pelo gélido inverno da região.
Bill vive harmoniosamente e em controlada tranquilidade financeira ao lado da esposa Eillen (Eillen Walsh) e das cinco filhas do casal. Até que, nas primeiras horas de uma manhã como outra qualquer, durante uma entrega de carvão, ele flagra a entrada, à força, de um jovem adolescente (Zara Devlin) no convento conhecido como Lavanderia das Madalenas, que já funciona ali por cerca de 100 anos.
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O silencioso Bill (Murphy), num dia como qualquer outro, testemunha algo que desencadeará um turbilhão interno
Não é o caso de detalhar o contexto daquela adolescente nem o que significava internar uma jovem ali. O leitor encontrará essas respostas fácil fácil no Google, mas sugerimos primeiro ver o filme. Até porque Pequenas coisas… é grandioso também por fazer de seu protagonista um igual aquele espectador que não sabe nada sobre a Lavanderia das Madalenas.
Na sala do cinema somos todos Bill, olhando para aquela situação confusa e incomodados com ela à medida em que ela vai se desvelando. A questão é: há algo que podemos fazer? Não da poltrona do cinema, claro, mas Bill sim. Só que ele, assim como nós, está num lugar confortável. E fazer algo significa ir contra uma influente instituição centenária, administrada pela Igreja Católica, tendo como consequência o comprometimento da estabilidade financeira de seu negócio e até o futuro de suas filhas na comunidade onde vive.
É difícil lembrar de um filme contemporâneo em que a angústia da impotência de um personagem seja tão colada a angústia da impotência do espectador.
Mas o grau de sofisticação da adaptação do roteirista Enda Walsh e da direção de Mielants segue além. Numa alternância de situações separadas cronologicamente por cerca de 30 anos, conhecemos um pouco mais sobre Bill a partir da relação com a sua mãe.
Sem nenhum aviso prévio (que bom, assim abre ainda mais os olhos dos espectadores), Pequenas coisas… encadeia as primeiras imagens dos anos 1950 podendo deixar alguém perdido na transição, mas não demora muito para as peças irem se encaixando e, concomitantemente, irmos percebendo o quão devastador é para Bill saber da experiência de jovens como aquela que foi internada no convento.
CILLIAN MURPHY, GIGANTE – É aí que começamos a entender melhor os silêncios do protagonista. Na combinação brilhante entre performance de Murphy, direção de Mielant, direção de arte de Paki Smith e fotografia de Frank van den Eeden (o mesmo de Close) temos Bill como um dos protagonistas mais misteriosos em seu dilema e sofrimento interno.
Ele até tenta iniciar uma conversa com a esposa sobre o assunto, mas há algo profundamente íntimo nele que o faz desistir, por saber ser uma percepção inalcançável para qualquer outro que tenha tido uma infância diferente da sua. Bill é, portanto, um personagem que vive sob a sombra de sua própria tristeza.
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Bill (Murphy) e seu sofrimento solitário, ao lado da esposa (Walsh)
E é pela imagem, e não pela palavra, que Pequenas coisas… imprime melhor o que há de difuso e sofrido no íntimo de Bill. Em suas noites mal dormidas, o refúgio da pequena sala de estar durante a madrugada é o ambiente perfeito para percebermos o rosto marcado de Murphy, que pendula entre a penumbra e o fio da luz rala que entra pela fresta da cortina na janela, anunciando o início de mais um dia difícil e ordinário, como qualquer outro.
É assim também, com a luz tremulante de uma lareira, sombreando sua cabeça cabisbaixa e submissa, que acompanhamos o momento mais tenso do filme. Está na conversa que acontece no escritório do convento entre Bill, a Madre Superiora Mary (Emily Watson) e uma das adolescentes internadas. A mise-en-scène aqui estabelece algo próximo ao insuportável, com os olhos de Murphy nervosos, inquietos, se esgueirando dos olhos fulminantes de Watson.
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A Madre Superiora Mary (Watson) e seu olhos fulminantes
São os tantos pequenos gestos deste filme, somados, que o tornam gigantesco na informação de quem é Bill. Como o simples gesto de vestir seu casaco, reforçado com couro nos ombros, para ir ao trabalho no início da manhã. Murphy o veste como quem coloca todo o peso do mundo sobre os seus ombros.
Assim como é a representação do ritual diário dele lavar suas mãos sujas de carvão, ao final do dia, para deixar no ralo da pia a sujeira da rua, como um marco divisor claro, separando a dureza do mundo lá fora da doçura ali dentro de casa com a sua família luminosa.
Há também espaço para a grandiloquência do ponto de vista da performance, como o ápice da agonia física de Bill, com a crise de pânico enquanto dirige pela neve. Seja qual for o caminho, grandiloquência ou sussurros faciais, ele é defendido pelo ator com uma galhardia e competência que merecem ser observadas de joelhos e com as mãos unidas.
Daí que pode surgir a dúvida na cabeça de você, leitor: Mas se Murphy está tão bem porque não entrou na corrida do Oscar 2025 na categoria ‘Melhor Ator’? Há diversas respostas pragmáticas para isso, mas a nossa é: Isso não tem a menor importância.
O real valor de uma obra está em outras coisas. Nas pequenas coisas.
Esqueçam medalhas.
Vejam filmes.
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