
Um Completo Desconhecido
Como uma pedra rolante
Por Luiz Joaquim | 21.02.2025 (sexta-feira)

Alvy (Woody Allen) tem tentado bastante encontrar um novo par romântico após o seu divórcio, até que um amigo lhe agenda um blind date com uma repórter (Shelley Duvall) da revista Rolling Stones. Durante o encontro, no Madison Square Garden, a jornalista não para de falar de Bob Dylan, como quem fala de Deus, enquanto Alvy não esconde seu enfado pela devoção da moça. Quando ela pergunta se ele conseguiu ir ao show de Dylan, ele responde: “Eu? Não. Não consegui. Meu guaxinim teve hepatite”. E ela: Você tem um guaxinim?”.
É provável que Dylan tenha gostado da piada ao ver Annie Hall. Mas, hey, cá estamos nos colocando no lugar daquele professor chato do qual Allen tirou sarro neste mesmo filme, ao pôr, literalmente, Marshall McLuhan cara a cara com o boçal que, numa fila de cinema, vomitiva verdades sobre os estudos do filósofo canadense.
Tenha Dylan gostado ou não do que viu em Annie Hall, a piada continua boa e, assim como a repórter interpretada por Shelley Duvall, o novo filme de James Mangold – Um completo desconhecido (A Complete Unknown, EUA, 2024) – olha para o seu cinebiografado como quem olha a um deus, e nos faz, com competência, encará-lo da mesma forma.
O bom é que Mangold permite haver um pequeno espaço em seu filme para que também joguemos, espectadores, sobre o seu protagonista, o mesmo olhar que Alvy joga para a jornalista da Rolling Stones depois da moça proferir tantos elogios a Dylan.

Mangold com Chalamet no set de “Um Completo Desconhecido”, abrindo espaço a vários olhares sobre o deus Dylan.
Adaptado por Mangold e Jay Cocks do livro Dylan Goes Electric! (2015), de Elijah Wald, o filme nos leva do início dos anos 1960, os primeiros da carreira de jovem compositor que surgiu como um revelação da música Folk, até a sua apresentação na edição de 1965 do Newport Folk Festival, quando utilizou guitarra elétrica no evento.
Situação que o filme eleva ao nível de uma hecatombe de tensão dentro do evento, quando se sabe que o que realmente aconteceu foi algo mais harmonioso, com o seu padrinho musical, Pete Seeger (Edward Norton), ao lado de Dylan apoiando-o na ousadia.
Dentro daquele período, Mangold e Cocks entrelaçam o sucesso inicial do jovem dândi da música aos seus primeiros amores. O romance com Joan Baez (Mônica Barbaro) – uma já celebrada interprete quando Dylan ainda nem havia gravado o seu primeiro álbum em 1962 -, por exemplo, surge como algo definidor para a meteórica ascensão do rapaz com o seu álbum #2, The Freeweelin` Bob Dylan, lançado no ano seguinte. Este sim, com composições próprias.

Barbaro como Baez: De comover com facilidade sincera.
No equilíbrio notável que Um completo desconhecido estabelece entre as forças humanas que circundam muito proximamente ao jovem Dylan, além de Baez, está a namorada Syvie (Elle Fanning).
Sylvie é a única personagem aqui sem alguma qualificação no ambiente retratado pelo filme: aquele habitado por gênios da arte de criar música ou de negociar música. Sylve é uma ordinária. Apenas uma comum, sensível e de bom gosto que faz da sua vida uma luta pelos direitos humanos.
É principalmente por Sylvie – nome fictício, a pedido de Dylan para Mangold de modo a não expor a real personagem -, que o filme nos permite dar aquele olhar de enfado a Dylan, como Alvy olha para a repórter da Rolling Stones.
Aquilo – a relação de Dylan e Sylvie -, que parecia estruturalmente restrito à primeira parte do filme, é resgatado em seu desfecho de modo enormemente engrandecedor a este belo roteiro, de forma que sim, nos faz perceber fraquezas no deus Dylan, ou melhor, no humano Dylan, ao mesmo tempo em que passamos a enxergar naquela ordinária garota algo de sobrelevado, altivo, colocando-a num lugar mais alto, próprio aos maduros.

“De vez em quanto é bom falar dos fracassados”, dizia Fred 04. O que não é o caso de Sylvie (Fanning), que aqui ganha igual status de deusa
E o melhor, com direito a citação a A estranha passageira (1942), protagonizado por Betty Davis. É um desses acertos que só cineastas cinéfilos podem acessar e conceber, e que raramente vemos tão bem empregado em filmes contemporâneos. Para você, leitor, entender melhor, veja também A estranha passageira.
CHALAMET – Muito tem se falado de Timothée Chalamet no papel do jovem Dylan. E é para ser falado mesmo. Não só pela tocante competência e atrevimento de interpretar Dylan na vida mas também nas performances de suas músicas. E que performance! Que o diga a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, indicando-o, neste 2025, na categoria Melhor Ator.

Físico franzino e a inexpressivade expressiva dos olhos eternamente tristes de Chalamet ajudam na combinação para o seu ‘Dylan’
Para quem duvida, não precisa esperar muito durante o filme para conferir a razão dos elogios ao ator em Um completo desconhecido. Logo nos primeiros minutos, quando o desconhecido rapaz de 20 anos encontra seu ídolo da música Folk, Woody Guthrie (Scoot McNairy), moribundo num hospital, ele já começa a tocar ao violão a sua composição/homenagem, Song to Woody. Ao final da canção, o espectador provavelmente fará a mesma cara de estupefação para Chalamet que Woody e o amigo Pete Seeger fazem para Dylan: a de que estão diante de um verdadeiro e impressionante talento.
Outros muitos momentos bastante bem encenados como este surgem ao longo do filme de Mangold, com música e letra perfeitamente encaixadas ajudando a construção da narrativa e fazendo nos comportar, espectadores, como repórteres da Rolling Stones num encontro com Alvy Singer quando o assunto é Bob Dylan.
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