
Mickey 17
Um Bong Joon-ho que desaponta em incursão americana
Por Ivonete Pinto | 04.03.2025 (terça-feira)

Exibido fora da competição no 75º Festival de Berlim, Mickey 17, de Bong Joon-ho, conseguiu decepcionar a crítica e os jornalistas de entretenimento. O perfil mais exigente e o mais festivo nutriam grande expectativa sobre o filme, afinal, Parasita (2019) foi (quase) uma unanimidade de recepção, com tantos prêmios conquistados, incluindo o de ter sido a primeira produção não falada em língua inglesa a vencer o Oscar de Melhor Filme.
De Bong Jonn-ho, esperava-se mais ironia, um roteiro mais arquitetado, reviravoltas inteligentes e alguma crítica social mais contundente. Embora todos esses elementos até podem ser encontrados nessa sua produção americana, falada em inglês, com astros estrangeiros, é de se lamentar tanto esforço e recursos desperdiçados em uma enrolação de temas e subtemas em torno de… do que mesmo? Ok, a morte, os múltiplos, o autoritarismo corporativo, a corrida espacial, os experimentos científicos, etc. Tudo teria força suficiente não fosse um roteiro confuso, que impossibilita o aprofundamento dos temas, somado ao tom farsesco um tanto neurastênico que desvia a atenção do espectador.

Baseado no livro “Mickey7”, o filme falha em traduzir a alegoria do capitalismo depredador.
Robert Pattinson se esforça fazendo dois personagens ao mesmo tempo (Mickey 17 e Mickey 18), contracenando com ele mesmo, mas a montagem fragmentada demais e uma verborragia desnecessária impedem que observemos sua atuação. Nestas condições, qualquer ator em seu lugar teria a mesma expressividade, até um Alexandre Frota ou um chuchu falante não faria diferença.
Dividido em atos e com 2h17min de duração, Mickey 17 pode ser resumido mais ou menos assim: Mickey (Pattinson) e seu amigo Timo (Steven Yeun) são perseguidos por bandidos mafiosos e para escapar, entram num programa que manda pessoas para outro planeta (ou galáxia), chamado Niflheim (na mitologia nórdica, Niflheim é um dos Nove Mundos, onde prevalece a escuridão e o gelo). Na engrenagem da expedição para colonizar/ocupar esse outro planeta, Mickey, um simplório sem estudos, significa apenas um funcionário descartável. Após sua morte, um outro Mickey é gerado, acoplado de quase todas as suas memórias. Só que sua personalidade é ligeiramente diferente. Uma comédia dark com produção norte-americana.
Os chefes da expedição são vividos por Mark Ruffalo e Toni Collette. Forjam vilões tão planos e investem tanto num overacting que o filme fica desagradável a cada vez que entram em cena. E eles vivem entrando em cena…

Assim como “Okja”, “Mickey 17” é uma produção em inglês que não alcança o nível dos trabalhos anteriores de Bong Joon-ho.
Mesmo o recurso do par romântico, se não está forçado, redunda como aleatório: o herói duplicado vira namorado da inteligente funcionária da segurança Nasha (Naomi Ackie). Uma mulher negra cuja cor soa mais como enfeite identitário do que como algo politicamente importante. Seja como for, pares românticos são componentes indissociáveis de narrativas clássicas e faz sentido estar no filme.
Ruffalo, em particular, talvez por o termos visto há pouco em Pobres criaturas (Yorgos Lanthimos, 2023), parece se repetir. Embora no filme do grego, seu personagem possuísse camadas que este do sul-coreano não tem. Zero de profundidade. Ao fim e ao cabo, a sensação é de estarmos vendo um ótimo diretor que perde sua identidade e corre o risco de ser descartável. Apostou numa produção grandiosa, onde a sátira associada à ironia que funcionava bem filmando na Coreia do Sul, simplesmente some aqui.
Livro – A alegoria do capitalismo depredador está no centro da novela de ficção científica ‘Mickey7”, do americano Edward Ashton (2022). Portanto, é uma adaptação, que conta com o autor nos créditos do roteiro do filme, junto com Bong Joon-ho. Esse detalhe explica em boa parte o que é o filme: uma produção de matriz totalmente americana no conteúdo e na forma, onde um diretor do Oriente vem emprestar seu prestígio. O humor corrosivo, o traço deste diretor, não se multiplicou como Mickey.

Vilões caricatos e overacting: personagens de Ruffalo e Collette são planos e exagerados.
Não se trata da primeira incursão norte-americana de Bong Joon-ho. Okja (2017), aquela fantasia com Tilda Swinton, também envolvendo experimentos científicos, também não deu certo. De modos que não é gratuito associarmos os dois empreendimentos em língua inglesa e entender o resultado de Mickey 17 mais próximo de Okja do que pelas qualidades mostradas em Mother (2009); e mesmo Parasita, onde a acidez irônica, por si só, era o comentário político do filme.
Há momentos, é preciso ressaltar, que funcionam como catárticos quando em alusão ao atual presidente dos Estados Unidos, Elon Musk, na figura do vilão de Mark Ruffalo. Mesmo isto, e mesmo sabendo que os vilões da vida real atuam no modo over, a menção se perde numa alegoria mal construída, que mais exaspera do que faz pensar.
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