
Entrevista: Anny Stone e Neco Tabosa
Os autores falam sobre livro que ensina cinema a partir de filmes pernambucanos
Por Yuri Lins | 30.03.2025 (domingo)

O ensino do cinema no Brasil ainda enfrenta desafios, especialmente no acesso a materiais que dialoguem com a realidade cultural do país. Buscando suprir essa lacuna, os cineastas e educadores Anny Stone e Neco Tabosa lançaram o e-book A Língua do Filme, publicado pela editora Vacatussa. A obra utiliza produções audiovisuais pernambucanas para exemplificar conceitos técnicos, como encadeamento de imagens, composição sonora, enquadramentos e uso da luz.

Capa do e-book A Língua do Filme, de Anny Stone e Neco Tabosa. Obra pode ser baixada gratuitamente.
O livro surgiu a partir de um curso online ministrado pelos autores em 2022, no qual filmes locais foram adotados como recurso pedagógico. A experiência positiva levou à criação do material, que agora amplia o acesso a esse conhecimento. Incentivado pelo Funcultura Audiovisual, o projeto busca tornar o aprendizado do cinema mais acessível e menos restrito a grandes produções internacionais.
Com coordenação de pesquisa do pesquisador Filipe Falcão, a obra inclui a seleção dos filmes analisados e a estruturação do conteúdo. O e-book também investe em acessibilidade, oferecendo uma versão em audiolivro com roteiro de audiodescrição elaborado por Manuel Borges da Costa. As narrações foram gravadas pelos próprios autores e por Falcão, enquanto a trilha sonora, assinada por Angelo Souza/Graxa, incorpora elementos de soul e R&B para criar uma experiência imersiva.
O lançamento do livro reforça a ideia de que o cinema pode ser compreendido e praticado independentemente de grandes orçamentos, valorizando a criatividade e as particularidades do audiovisual brasileiro. A obra se insere em um movimento de democratização do ensino da linguagem cinematográfica, evidenciando a potência da produção local como ferramenta pedagógica.
Na entrevista abaixo, Anny e Neco detalham o processo de criação de A Língua do Filme, desde a concepção do projeto até a escolha dos filmes pernambucanos que ilustram os conceitos técnicos abordados. Confira:
Como surgiu a ideia de transformar o curso sobre linguagem cinematográfica em um livro?
Neco – Nós realizamos o curso A Língua do Filme em 2022, com apoio do edital Recife Virado, da prefeitura do Recife, e acabamos criando um material didático muito rico. Foram duas turmas que lotaram a capacidade dos grupos de videoconferência que a gente organizou durante a pandemia! Os slides, feitos por Anny, já eram um show à parte, porque traziam um panorama ilustrado de cada tópico, com uma sistematização de citações acadêmicas, e também ficaram visualmente vibrantes, com o uso de frames dos filmes que citávamos no curso.
Anny – Não poderíamos deixar tudo isso engavetado, então fomos em busca de uma forma de fazer esse material circular e chegar mais longe. Foi assim que inscrevemos o projeto do e-book no edital do Funcultura, mas era necessário algo a mais, algo especial para o projeto do livro. E foi daí que veio a ideia de focar apenas em filmes feitos em Pernambuco, o que acabou sendo muito desafiador e instigante ao mesmo tempo. O e-book foi publicado pela Vacatussa, e pode vir a ter uma versão impressa em breve.
Qual foi o maior desafio ao traduzir conceitos técnicos e artísticos para um público amplo e diversificado?
Anny – Falando com muita sinceridade, não nos pareceu um desafio, e sim algo que veio com muita naturalidade, porque nós resolvemos escrever de uma forma similar à forma como nos comunicamos. Parte da escrita foi feita a partir da transcrição do nosso material gravado das aulas, ou ao menos sempre partiu desse material como base.
No curso, nós já visávamos isso de dialogar com um público bem amplo, e de todo o Brasil. Então foi importante tanto trazer conceitos mais básicos, como “tipos de plano”, mas sem deixar de debater sobre os mais complexos, como “estruturas de roteiro” e “tipos de metáfora”. Também foi essencial nos permitir compartilhar nossos “segredinhos”, nossas técnicas para pensar e executar nossos próprios filmes.
Neco – O chamado via redes sociais chegou a realizadores/as do Rio de Janeiro e Salvador, professoras de Olinda, atores de Camaragibe, pessoas ligadas à produção de shows, etc. Daí, tivemos o cuidado de checar com frequência como estava a recepção do outro lado, incentivando a interação. Nos casos em que a gente era instigado em resposta a trazer mais exemplos de algum tema, foi inevitável ir lembrando de práticas de set, lendas urbanas e dinâmicas diversas de produções em que estivemos diretamente ligados. A busca de ampliar o alcance foi definindo o curso e abrindo caminho para o e-book, penso.

Marcélia Cartaxo em cena de “Lispectorante”
Como a experiência de dirigir filmes como “Bia Desenha” e “Geronimo” influenciou a escrita do livro, especialmente na abordagem prática dos conceitos de linguagem cinematográfica?
Anny – Nossas experiências práticas foram fundamentais no processo e são também o alicerce do nosso conteúdo no livro, de alguma forma. Todo nosso conhecimento e opiniões sobre o que é fazer filmes ou pensar sobre eles estão atravessados pelas nossas próprias experiências em sets de filmagem, desde quando fomos estagiários até alcançar esse lugar atual nas áreas de roteiro e direção. Durante o livro, também comentamos sobre processos criativos de outros filmes, com a devida autorização de seus realizadores, como Fim de Semana no Paraíso Selvagem, de Pedro Severien – Severino, Fim de Festa, de Hilton Lacerda, Lispectorante, de Renata Pinheiro, Sujeito Oculto, de Leo Falcão, entre outros.
Mas, definitivamente, a experiência de produções nossas tinha que ser compartilhada, pois, nas nossas obras, nós somos os responsáveis finais pela união de todos os elementos da linguagem cinematográfica utilizados no filme. A criação e o uso desses elementos, ao longo de uma produção, são feitas de forma coletiva, com troca e escuta com toda a equipe. Porém, a união desses elementos e o resultado final da obra foram conduzidos por nós, enquanto pessoas diretoras e realizadoras.
Neco – Que alegria você perguntar pelo trabalho em Bia Desenha, obrigado, vou aproveitar! Porque a direção de um projeto para o público infantil, em uma série destinada à exibição em TVs públicas, com uso de comédia, temas musicais e fofura, pode ser o maior desafio de uma vida. E nunca há espaço nas resenhas de críticas especializadas em audiovisual. É uma produção considerada “menor”, sei lá. Mas acho importante demais essa reflexão. Conhecer as regras da contação de histórias, e até negar algumas delas, em função do ritmo dos episódios, explodiu minha mente na época. E, enquanto dirigia, colocar essas coisas em prática foi a prova dos nove do conhecimento da linguagem audiovisual para mim. Usei alguns exemplos desses nas aulas, e, para o livro, acabamos priorizando exemplos de filmes para o cinema, para nos mantermos dentro do escopo.
Como foi a colaboração com Filipe Falcão na pesquisa e escolha dos filmes que ilustram os conceitos do livro?
Anny – Ele trouxe essa ideia, à qual nós aderimos imediatamente, de traçar uma linha do tempo do cinema pernambucano a partir dos exemplos trazidos. Então, entre curtas e longas produzidos no estado, tentamos abordar produções de diferentes temáticas e contextos, desde clássicos pernambucanos como A Filha do Advogado (1926) e Palhaço Degolado (1977), até curtas contemporâneos como Abodô (2024), de Bruna Leite e Cecília da Fonte. Muitas vezes, os exemplos selecionados por Filipe também foram um facilitador para destravar a escrita, pois, ao juntar as informações sobre cada capítulo com os filmes escolhidos por ele, era só observar os exemplos a partir daqueles conceitos.
Neco – Filipe é um dedicado pesquisador e cinéfilo entusiasta da produção cinematográfica do estado. Os filmes que ele não conhecia para ilustrar algum aspecto técnico, ele foi estudar a fundo para trazer para o projeto e ainda criou uma linha do tempo para escolher os frames mais representativos. Foi ótimo e reforçou a abordagem acadêmica, que deixou o livro ainda mais útil para quem quer usá-lo no contexto do estudo da linguagem.

Cena de “A Filha do Advogado”
Como a escolha de exemplos locais contribui para deslocar o imaginário cinematográfico centralizado em produções europeias e norte-americanas?
Neco – Os gringos são irritantemente impecáveis nas técnicas de filmagem, afinal fazem isso com apoio estatal que é estratégico para aquelas economias, com toneladas a mais de dinheiro e há muito mais tempo. O cinema feito na periferia do mundo, como o do Nordeste do Brasil, parece ter muito mais de teimosia, coragem e sorte e acaba por forçar uma reinvenção eterna das microempresas que dão conta dessa cadeia produtiva. Esse processo de escrita trouxe pesadamente perguntas como: o que significa fazer um filme, como as cenas filmadas conseguem guardar a intenção do roteiro, como/quando/se esses filmes chegam nas plateias, como uma filmografia local pode construir um imaginário coletivo… Passamos por tantas questões no processo, e eu só consegui tentar condensar esse monte de perturbação na ideia de que “um filme é também o lugar onde ele é feito”. Que não resolve muita coisa, mas já é um começo.
Anny – No próprio curso que demos, abordávamos muitas histórias de bastidores e exemplos de filmes gringos. Com o livro, resolvemos olhar apenas para as produções pernambucanas, e isso acabou por agregar um valor histórico importante também para o projeto. De alguma maneira, também estamos gerando registros sobre como o cinema tem sido feito aqui, quando comentamos situações de sets pernambucanos desde sua etapa de roteiro até soluções práticas diante de imprevistos (que às vezes acabam até deixando as cenas mais potentes) e escolhas criativas e poéticas do processo de montagem. O e-book também é mais uma forma de levar nosso cinema para o mundo todo, pois está online e é gratuito. Voltar o olhar para nosso cinema é também olhar para nós mesmos, nossos próprios filmes e universos, e permitir que outras pessoas se identifiquem com isso.
O livro inclui audiolivro com audiodescrição e tradução em Libras. Como foi o processo de tornar a obra mais acessível?
Neco – O audiolivro sempre foi parte integrante do projeto, para contemplar a acessibilidade nesse material maravilhoso. Para a gente, tornou-se uma tarefa até prazerosa, a de gravar todo o texto e totalizar mais de cinco horas de material. Contamos com Manuel Borges da Costa, um profissional de audiodescrição, para traduzir as imagens em palavras, de forma que fosse eficiente para a compreensão de pessoas cegas e com baixa visão. E, para dar ritmo à leitura, o projeto de Angelo Souza/Graxa, que vem lançando álbuns inteiros a partir de inputs muito surreais na produção de música por inteligência artificial na “Big Man Records”, foi um som que a gente escutou muito na escrita final do livro e acabou virando a trilha para o audiolivro. São 5 horas e meia de áudio que dá para animar uma viagem de Recife até Triunfo sem repetir nenhum capítulo.
Anny – Desde o primeiro momento, queríamos fazer a versão em áudio com a nossa própria voz. Há um trecho escrito por Filipe na apresentação do livro que é lido por ele, mas o restante é todo nas nossas vozes, Anny Stone e Neco Tabosa. A leitura de cada um não corresponde diretamente ao que um ou outro escreveu, e foi muito mais baseada numa divisão de assuntos que gostaríamos de narrar, ou na nossa disponibilidade entre nos dividirmos com as demandas de finalização do e-book, a produção do evento de lançamento, e com sermos pai e mãe em tempo integral de Ícaro, que tem 4 anos atualmente. O audiolivro é bem extenso, tenho vontade de dividí-lo em capítulos e lançar o material em forma de podcast. Acho que pode ser interessante ter mais uma plataforma que permita mais pessoas acessarem o conteúdo. Deixo aqui a dica de que, se lançarmos, vamos avisar lá no nosso Instagram, @alinguadofilme.

Cena do filme “Geronimo”
O que vocês esperam que os leitores levem consigo após a leitura de A Língua do Filme e como acreditam que a obra pode contribuir para o futuro do cinema pernambucano?
Anny – Logo após o lançamento no Cinema do Porto, que contou com o apoio da Fundação Joaquim Nabuco, realizamos também um lançamento na Unicap, a convite da turma do curso de Fotografia. Em ambos os eventos, a troca com o público foi muito alto astral, e todo mundo pareceu bem empolgado. O e-book, com ilustrações de Greg e design de Patrícia Cruz Lima, ficou muito bonito mesmo. Na versão em áudio, acredito que nossa leveza na leitura e o som de Graxa também trazem esse diferencial interessante. Para além disso, também recebemos comentários interessantes feitos por Pedro Severien sobre o projeto nas redes sociais, por exemplo, e todos os realizadores com quem entramos em contato durante a produção do material também ficaram muito empolgados e felizes de terem suas obras incluídas na pesquisa. Olhar para esse pequeno caleidoscópio que é o livro diante da história do cinema pode contribuir para o futuro não só como esse registro do nosso agora, mas talvez também como base para futuras produções que estejam conscientes desse passado e, quem sabe, utilizem nosso material teórico como base para construir – ou desconstruir – sua própria “língua do filme”.
Neco – A recepção tem sido bem boa por estudantes de cinema, e acreditamos que é uma tentativa, como uma mensagem na garrafa, de conectar esses pontos entre a vontade de produzir que existe aqui e signos que são universais dessa linguagem, dando uma ajudinha a quem vai começar a já pular para a próxima etapa, quem sabe auxiliando na hora de inventar um projeto novo. É cedo para saber. Se rolar, avisem aí, por favor!
O livro A Língua do Filme e seu audiolivro estão disponíveis gratuitamente para todos que desejam mergulhar no universo da linguagem cinematográfica e conhecer mais sobre o cinema pernambucano. Baixe o livro aqui e o audiolivro aqui. Além disso, para ficar por dentro das novidades e interagir com o projeto, siga o perfil do Instagram @alinguadofilme.
0 Comentários