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Digital

O Reformatório Nickel

Entre o real e o ilusório: a narrativa intimista e ousada de RaMell Ross.

Por Humberto Silva | 05.03.2025 (quarta-feira)

Um dado inicial que, assevero, merece registro: a representação no cinema contemporâneo hollywoodiano de UM imaginário da sociedade norte-americana nas décadas de 1950, 1960 – e, talvez com menos intensidade, mas igualmente, na da década de 1970.

Outro dado que, creio, também se deva ter como registro: de modo até certo ponto frequente, pelo menos nos mais recentes quinze anos, a temática racial em filmes hollywoodianos revela uma geração notável de diretores negros; assim como, para o mainstream, seus filmes quase invariavelmente, salvo engano, têm quando menos um representante na festa do Oscar.

Mais um dado que, entendo, cabe registro: o interesse, identicamente recente, quase pantagruélico no cinema hollywoodiano por filmes com “fatos reais” e que, notadamente, resultam de livros com sucesso de vendas e de temas que, de algum modo, impactam (comovem) o público mais amplo possível.

Surreal e experimental: RaMell Ross desafia as convenções do cinema mainstream, criando uma obra que volatiza entre o real e o onírico

Um dado circunstancial, ainda, para registro: RaMell Ross inscreve-se entre os diretores negros nesse momento, digamos, de “forte” presença negra no cinema industrial norte-americano.

Completo, pois, o registro: RaMell Ross não é debutante no mundo do cinema, mas lhe fui apresentado por O Reformatório Nickel, filme que põe lentes nos anos 60, na temática racial, no terrível reformatório que realmente existiu e gerou o romance The Nickel Boys (2019), de Colson Whitehead.

Breve digressão. O cinema, desde seus primórdios com os Lumière e Méliès, exibe uma bifurcação: de um lado, imagens reais da realidade (filmes documentais); d´outro, imagens ilusórias da realidade (filmes ficcionais).

Como assinalado, sendo uma bifurcação, cada lado segue caminho próprio. Portanto, à palavra “realidade” não se aplica o mesmo significado, conforme se tenha um documentário ou uma obra de ficção.

O caso é: o cinema se expõe, como forma de expressão artística, a complexidades absolutamente impossíveis em outras artes. No caso… para dar destaque: malgrado a bifurcação, pontos de contato em obras híbridas tornam difícil separar o real e o ilusório. No caso… para acentuar o destaque: o espectador, frente a certas obras, tem uma ‘impressão de realidade” na qual há indiscernibilidade entre o real e o ilusório.

Este, por óbvio, um problema de ordem conceitual que não cabe abordar nestas linhas aligeiradas. Mas que, penso, vale a lembrança quando se está diante de um filme como O Reformatório Nickel. Enfim, todo filme que exibe o alerta “baseado em fatos reais” carrega, para mim, esse problema de fundo.

Findada a breve… digressão. Passo a suscinta descrição de O Reformatório Nickel. Pois sim, distante de uma écfrase.

Na Flórida, nos anos 60, um adolescente negro sonhador, que vive com a avó, sonha com o ingresso numa faculdade e assim ter um “brilhante futuro” …

A narrativa intimista de RaMell Ross: a câmera segue os olhares dos protagonistas, mergulhando o espectador nos horrores e sonhos de dois adolescentes no reformatório

No meio do caminho, no entretanto, há uma pedra. Golpe d´azar (sorte) e em vez da faculdade o adolescente vai parar no Reformatório Nickel, escabrosa instituição que se tornou célebre como centro de tortura e segregação racial na Flórida.

No reformatório, ele se aproxima de outro adolescente. Os dois, então, com a cumplicidade que se estabelece, vivenciam e conversam sobre os horrores que presenciam. No fim da “história”, sonham e tentam uma canhestra e, consequentemente, estabanada fuga.

Estas as linhas bem condensadas do script de O Reformatório Nickel. Agora, o que verdadeiramente surpreende o espectador é a maneira com que RaMell Ross “conta essa história”.

Ele faz uso da “câmara intimista”. Claro, nenhuma novidade nessa escolha de foco narrativo, senão que praticamente não há cena em O Reformatório Nickel que não seja exibida pelo olhar ou do protagonista ou de seu amigo.

As primeiras cenas do filme deixam o espectador, suponho, atordoado, meio que tentando entender quem é quem e, com isso, o porquê do que é visto. Logo, contudo, esse espectador se dará conta das situações exibidas e do papel dos personagens que entram em cena.

Mas, sim, ao colocar o foco narrativo no olhar de dois personagens, O Reformatório Nickel exige atenção redobrada do espectador e, por conseguinte, o sentimento de exaustividade (meu amigo Luca Scupino, crítico de cinema, reagiu: “Achei que o dispositivo da subjetiva se esgota rápido, transforma aquela narrativa sensível numa espécie de videogame…”).

O legado de O Reformatório Nickel: um filme que, apesar de sua narrativa singular, pode inspirar reflexões sobre escolhas artísticas e o horror da segregação racial.”

Tenho posição similar à de Scupino: a exaustão, em certas escolhas de linguagem no cinema, acaba fazendo a forma se sobrepor ao conteúdo.

Mais precisamente: para mim, em O Reformatório Nickel, RaMell Ross mostra necessidade de inovação, de acento no formalismo; com isso, seu filme fica exposto a ponderação sobre um exercício excessivamente estilizado em proveito do assunto: o horror vivido por dois adolescentes numa instituição de correção penal.

Não se pode negar, não obstante, para uma realização mainstream, RaMell Ross revela ousadia. O Reformatório Nickel escapa à massificação narrativa com foco neutro em relação às imagens.

Por isso, justamente, pondero que seu filme mereceria uma atenção além da que tenho notado. Trata-se de uma fita totalmente lateral entre as indicadas ao Oscar desta temporada – aqui no Brasil, sequer exibido em salas de cinema foi direto para o streaming.

Definitivamente, não “aposto” num futuro promissor para O Reformatório Nickel. Parece ser o tipo de filme a que sequer a expressão “cair no esquecimento” faria sentido.

Esse para mim, todavia, um dos cruéis caprichos do CINEMA: quais obras vingam em razão do PODER da indústria de entretenimento?

Caso, talvez, O Reformatório Nickel propriamente não agrade com sua “singular” condução narrativa, tenho em vista que se trata de uma realização que poderia estimular debates sobre escolhas narrativas num filme mainstream que volatiza, simultaneamente, um ar tão experimental quanto surreal.

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