
Quando Chega o Outono
François Ozon e a fragilidade das relações humanas
Por Humberto Silva | 25.03.2025 (terça-feira)

Como é amplamente sabido, o acontecimento anual que mais mobiliza a indústria de cinema é aquele que envolve as premiações pela entrega do Oscar. Para nós, brasileiros, como “todos” sabem este ano foi especialmente marcante. A corrida pelas estatuetas faz do Oscar motivo para discussões de torcidas uniformizadas. Assim, praticamente não há lugar para toda sorte de realizações que estão distantes de tudo que se refere aos escolhidos pela Academia.
Alheio ao burburinho do grande momento hollywoodiano, o cinema se realiza nos quatro cantos do mundo. Inclusive na França, que este ano se fez representar com um filme “mexicano”: Emília Perez. Humores do mundo cinematográfico cada vez mais globalizado. Pois, sim, indiferente à loucura pela conquista da premiação máxima hollywoodiana, temos oportunidade de ver um filme francês: Quando chega o outono (Fran, 2024) , dirigido por François Ozon.
Acredito que Ozon seja bem pouco conhecido dos espectadores em sentido amplo. Mas também acredito que seja bem lembrado no círculo de cinéfilos mais antigos. Gotas de água em pedras escaldantes (2000), 8 mulheres (2001) e Swimming pool (2003) o projetaram como nome de destaque do cinema francês do início do século. Mas Ozon, embora extremamente produtivo nos anos posteriores, rapidamente deixou de circular por aqui.

O filme exige atenção aos laços humanos, marcados por incertezas e fragilidades.
Isso, aliás, especificamente no que se refere ao cinema francês nas últimas décadas: uma diversificação temática enorme, cineastas promissores que despontam e logo em seguida deixam de circular em nossos cinemas. Ora, jamais imaginei que com um Ozon, como para um Godard ou Truffaut nos 60 – ou mesmo nos 80/90 para um Leos Carax ou Luc Besson –, algum cinéfilo no início do século aguardaria ansiosamente o próximo Ozon.
Justamente por isso, depois de alguns anos sem notícias, tenho uma grata surpresa ao ver um novo Ozon. Confesso, não o procurei com muito entusiasmo. Mas, nova surpresa, com Quando chega o outono a oportunidade para me postar frente a um filme que me faz voltar a ver o mundo do cinema além da parafernália que agita o Oscar. Sob esse aspecto, o contraste é flagrante.
Não entrarei em detalhes sobre a trama. Darei apenas uma pincelada. Uma mulher caminha para a terceira idade. Ela vive só, numa casa de campo nos arredores de um vilarejo na região da Borgonha. Lá, ela tem uma amiga da mesma faixa etária, com a qual troca confidências. A mulher tem uma filha divorciada que vive em Paris, com um filho pré-adolescente. A amiga, por sua vez, vive com um filho adulto solteiro, cuja vida “desregrada” o levou a passar uma temporada na prisão.
Esses são os protagonistas de Quando chega o outono. O conflito se estabelece quando, nas férias escolares do neto, ele e sua mãe passariam esses dias na casa da avó. A relação entre mãe e filha, no entanto, é bastante tensa. Marcada por acontecimentos no passado da mãe que tornam a convivência entre as duas insuportável. Um incidente com uma torta de cogumelos, apanhados no campo pela avó e sua amiga, e mãe e filho retornam a Paris no dia seguinte em que chegaram.

“Quando Chega o Outono” não inova nem transgride, mas segue uma tradição clássica do cinema.
Em Quando chega o outono Ozon conduz a evolução dos acontecimentos de modo sutil e elíptico. O filho da amiga, inicialmente coadjuvante, acaba por se tornar o personagem que atrai as situações determinantes para o final da narrativa. Um dado que, para mim, merece atenção: Ozon propõe, numa primeira visada, uma trama de fundo psicológico. Com isso em vista, o espetador não teria, em princípio, motivos para desconfiar daquilo que vê: a relação conturbada entre mãe e filha em razão de um passado com uma ferida jamais cicatrizada.
Ocorre que Quando chega o outono é coberto por camadas que são subliminarmente desveladas. Assim, o foco centrado na psicologia cede frente a imagens que carregam o sentido de devaneio, de fantasia. Por isso, o acento em imagens que entrelaçam os ciclos da natureza e da vida. Ou seja, Ozon tem igualmente presente a ideia de que há um fundo moral a se extrair. O outono, período de vida da avó, seria possivelmente o de acerto de contas com sua existência. Daí a importância que assume na vida dela a presença do neto e a surpreendente amizade com o filho da amiga. A se considerar, então, o modo bastante sensível com que Quando chega o outono flerta com a alegoria.
Entendo, assim, que Quando chega o outono pode parecer enfadonho para quem tem expectativa de um cinema com fortes emoções, apelos de espetáculo, dramatização exagerada, reviravoltas desnorteantes. Ozon está longe disso. Ele propõe um filme que, antes de tudo, exige do espectador atenção à fragilidade nos laços que ligam as relações humanas. Por isso, sempre cobertas por uma zona imprecisa, indefinida: jamais sabemos ao certo se há fronteira entre a amizade desinteressada e a aproximação entre as pessoas por carência de afetos.
Agora, não se trata em absoluto de um filme original. E, apesar do ar alegórico, tampouco se possa esperar, sob qualquer aspecto, uma obra transgressiva. Pelo contrário, Quando chega o outono segue, sem atropelos notáveis, convenções clássicas da narrativa cinematográfica. Mas, sim, como tantas obras assim, provavelmente será esquecido no turbilhão de filmes que inundam nosso circuito durante o ano.
Uma nota para concluir: sua realização me faz ver uma maneira adulta para se pensar o cinema, sem estripulias apelativas da avassaladora maioria dos filmes que não nos deixam tempo para reflexão – este, aliás, um caminho que, no cinema atual, cada vez mais se rarefaz.
0 Comentários