
Sex, Love e Dreams
A admirável trilogia norueguesa
Por Ivonete Pinto | 27.03.2025 (quinta-feira)

Ótimo a Imovision estar lançando Sex (2024) e Love (2024), que compõem com Dreams (2025) a trilogia do diretor norueguês Dag Johan Haugerud. Os dois primeiros no dia 3 de abril (mas com pré-estreias diárias nos cinemas já a partir de hoje, 27/3) e o terceiro na sequência, mas ainda sem data definida. O ideal é que o cinéfilo veja os três para sintonizar com o universo temático e, principalmente, com o estilo do diretor.
A Noruega, com seus parcos 5,5 milhões de habitantes, é dona de uma produção de cinema pequena, totalmente subsidiada pelo Estado, e mais ou menos desconhecida. O título de maior circulação nos últimos tempos é a comédia romântica A pior pessoa do mundo (Joachim Trier, 2021, também parte de uma trilogia). O drama Armand (Halfdan Ullmann Tøndel, 2024) foi o indicado do país ao Oscar e premiado no Un certain regard de Cannes. Dag Johan Haugerud agora dá sua contribuição e conquista para o país, pela primeira vez, o Urso de Ouro no Festival de Berlim.
Quando Dreams (2025) saiu como o grande vencedor da 75ª Berlinale, houve estranhamento e, ao menos por parte da crítica, algum desapontamento. Afinal, como um tema tão “menor” pode suplantar obras tão políticas como Kontinental’25 de Radu Jude, que ficou com o prêmio de melhor diretor, ou O Último Azul, de Gabriel Mascaro, que ficou com o Urso de Prata? As explicações estavam mais no presidente do júri, Todd Haynes, que teria privilegiado um bom roteiro antes de um tema político. Uma outra explicação haveria de esperar mais um pouco para ser conferida. Quem não conhecia os dois filmes anteriores de Haugerud, mesmo que premiados em outros festivais, começou a achar que deveria ir atrás destes títulos porque haveria uma obra coesa a ser examinada.
Todd Haynes e jurados reconheceram este como um cinema autoral, que persegue temas do nosso tempo em torno de questões de gênero, e quanto elas permeiam as angústias contemporâneas. Vale dizer, inclusive, que a obra de Haugerud é feminista, se é que pode ser dada a um homem esta prerrogativa.

Cena de “Sex”
Em Sex, o diretor Dag Johan Haugerud ilumina a crise da heterossexualidade através de dois personagens, Feier (Jan Gunnar Røise) e Avdelingsleder (Thorbjørn Harr). Suas incertezas apanham as esposas desprevenidas.
Em longos planos-sequência, o casal central conversa sobre por que ele, de uma hora para outra, do nada, transou com outro homem. Uma só vez, apenas pela experiência. Enquanto o marido nega terminantemente ser gay, falam tranquilamente, em tom suave. O desconforto da esposa cresce na medida que o tempo passa, mais porque houve uma quebra de confiança do que outro motivo voltado à eventual homossexualidade do marido. Na verdade, a confusão na cabeça da mulher vai num crescendo sutil, por onde o público também já não sabe muito o que concluir sobre o que aconteceu com o marido.
Há uma ironia no ar, mas ao mesmo tempo um carinho da direção para com todos os personagens. Diria-se “empatia” se o termo não estivesse tão batido.
Muitos planos, com enquadramentos precisos, mostram a cidade de Oslo, toda certinha, quadrada, aborrecida. Diria-se, também, parecida com a vida na Noruega, não fosse um essencialismo de percepção do que nos é estranho.
Diálogos – Observa-se na trilogia as dúvidas e as fragilidades masculinas e femininas, que têm como cenário um país moderno e economicamente desenvolvido, onde a mulher ocupa participação igualitária na sociedade (pelo menos o poder político é delas, como a primeira-ministra e outros ministérios ocupados por mulheres), que tem posição similar nos países escandinavos. O cinema de Haugerud expressa esta situação ao falar da vulnerabilidade masculina evitando o vitimismo. O amigo de Freier, que ouve com espanto e compreensão a confissão sobre o sexo por acaso com outro homem, também confessa, por sua vez, que tem sonhos com David Bowie. Ele conta à esposa e ao filho e ninguém o julga.
Os três filmes carregam um peso grande nos diálogos. No caso de Sex, num primeiro momento eles nos soam forçados, porque são elaborados, quase intelectuais demais. E os dois homens, faltou dizer, são apenas limpadores de chaminés. Talvez o problema seja nosso em achar que operários não poderiam render diálogos intelectualizados… Na Noruega, onde não existe uma diferença brutal de salários entre as categorias, isto é possível. Inclusive morar muito bem, que é o caso deles.
São diálogos, cabe ainda ressaltar, deliciosos, bem construídos, sem moralismos e dentro da naturalidade que o cinema realista pede. E cheio de vogais e sons atípicos, como a língua deles exige.
Em Love, a solidão e a busca por parceiros casuais emergem como tema. A protagonista Marianne (Andrea Bræin Hovig), no primeiro encontro via aplicativo, logo de saída passa a mão na bunda do cara. Nós não vemos a cena, ela apenas descreve o gesto para o colega de trabalho, um tanto espantada consigo mesma. Marianne é urologista, uma profissão geralmente masculina, e acha que sabe tudo sobre próstata. Em longas conversas com o colega Tor (Tayo Cittadella Jacobsen), enfermeiro gay que cata parceiros casuais através de um app de encontros, vai descobrir que a próstata tem grande função no sexo entre homens.

Cena de “Love”
Hvite menneskers problemer – O ambiente de trabalho deles, o hospital, é com poucos pacientes, consultas demoradas, tudo limpinho e civilizado, como deve ser no mundo encantado da Noruega.
A ausência de conflitos envolvendo classe e problemas de subsistência, nos chama muito atenção, mas é uma questão nossa, não deles. Por isso, seria injusto, pelo menos inadequado, dizer que a trilogia é um típico white people problems: em bom norueguês do google: hvite menneskers problemer.
Apesar de viverem num país no qual operários ganham bem e todos parecem viver sem problemas de dinheiro, o diretor Haugerud faz um cinema sensível, de grande poder cinematográfico. O passeio da câmera pela cozinha desarrumada em Sex, por exemplo, é um primor de imagem que oferece ao espectador elementos e espaço perfeito para reflexão. Outros exemplos: Haugerud só usa música quando a narrativa requer; só movimenta a câmera quando pretende de fato dizer alguma coisa.
É assim com Dreams também, que gira em torno da adolescente de 17 anos Johanne (Ella Øverbye), encantada com a professora de francês Johanna (Selome Emnetu) ─ percebam apenas a troca de uma letra nos nomes, algo difícil de captar somente ouvindo os diálogos.

Cena de “Dreams”
A jovem se apaixona, fica obcecada mesmo. A mãe constata a situação e comenta com sua própria mãe, avó da menina – sempre em longos e espirituosos diálogos. Seria assédio da professora? Mas esse que parecia ser o tema, o conflito central do enredo, dá lugar ao fato de que a mãe descobre a paixão lendo às escondidas o diário da filha. A qualidade do texto da menina passa a ser o principal, já que a avó é uma escritora moderna, feminista e tal. A questão para a mãe e a avó é: este diário precisa ser publicado!
Imagine o leitor que este tipo de circunstância, quase cômica, serve na verdade para o diretor falar do que aflige o nosso tempo em termos de identidade e de como os dramas podem ser conduzidos. Um registro de uma época, mesmo que dado a partir do recorte de uma sociedade tediosa (o equivalente em inglês, boring, consegue ser mais preciso), sem guerras, sem conflitos de classe e onde os imigrantes não correm o risco de ser deportados facilmente. Para demarcar ainda mais o quão atípica é a sociedade norueguesa, as mídias sociais com seus bullyings inexistem. Então, nem pense em relacionar com a série da hora, Adolescência.
Por outro lado, difícil defender que esta trilogia seja mais relevante ou impactante quanto os filmes do Radu Jude – que aparece aqui apenas como contraponto porque disputou o Urso de Ouro em Berlim com o norueguês. Não é mais importante. Mas no reino das importâncias, esses três filmes funcionam como um refresco na enxurrada de outros com temas urgentes na programação de um festival como o de Berlim, de pegada assumidamente politica. Vale lembrar que Sex, quando exibido na Mostra Internacional de São Paulo, provocou essa mesma sensação necessária: que bom ver um filme leve e que faz pensar. Esse “refresco” não significa que os filmes sejam pueris; eles apenas não são pesados na maneira de conduzir assuntos que fazem parte da vida das pessoas, de grupos sociais, de gerações, com as devidas diferenças culturais. Esses filmes seriam ETs num país como, digamos, o Iêmem, caso exibidos por lá. Então, claro está que não são universais, mas se nem os dos romenos o são, nem os americanos, nem os brasileiros, nem os gaúchos…
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