
20º Panorama (2025) – O Deserto de Akin
Filme de Bernard Lessa retrata a busca por pertencimento e afeto
Por Marcelo Ikeda | 07.04.2025 (segunda-feira)

O terceiro longa-metragem de Bernard Lessa tem como ponto de partida a presença de médicos cubanos no programa Mais Médicos na vida de comunidades fora das grandes metrópoles, como exibe a cartela final que descreve o impacto do programa e lamenta sua descontinuidade. Mas me interesso por esse filme menos por esse ponto, que surge quase como um gancho para o realizador fazer cinema e prosseguir sua pesquisa poética no campo da realização. Nesse sentido, o etéreo O deserto de Akin apresenta muitos paralelos com o filme anterior do realizador, A matéria noturna (2021). Ambos falam de protagonistas negros estrangeiros que chegam ao Brasil e tentam fincar raízes. No filme anterior, Welket Bungué fazia o papel de um marinheiro; agora, Reynier Morales faz o médico cubano.
Esses dois protagonistas possuem grande presença física: são homens negros grandes e fortes mas, ao mesmo tempo, denotam certa fragilidade, uma melancolia que guia seus passos. Esse confronto entre a dureza masculina, certa opacidade de suas intenções, e uma imanente melancolia parece que contamina toda a mise en scène desses filmes. Uma rocha e uma água que escorre pelos seus vãos. Ambos os personagens não possuem grandes desejos, intenções ou transformações: querem simplesmente ter um porto seguro, viver em paz, arrumar uma companhia… ter um lar. Viver em deriva: parece que esses personagens estrangeiros aparentamente tão sossegados vão continuar vivendo em deriva e não vão conseguir ter um lar. Partir ou ficar: fincar raízes. Viver em solidão ou casar-se. Parece que esses personagens nômades razoavelmente opacos perambulam em deriva em busca de um lar e especialmente da possibilidade de receber e compartihar afeto em um mundo estrangeiro no qual eles precisam se adaptar.

O diretor cria um cotidiano discreto, com poucas cenas, mas desenvolve uma atmosfera de cumplicidade entre os personagens, focando em pequenos gestos e emoções, sem grandes mudanças.
Curar, ver. Há ainda um episódio em O deserto de Akin que merece melhor atenção: um de seus atendimentos é de um menino quilombola (sua família também parece ser a de estrangeiros, mas de outro tipo de estrangeirismo) que possui um problema na córnea de seu olho direito, e sua mãe reluta em aceitar a recomendação do médico que o menino precisa aceitar um transplante de córnea, a presença de um corpo estrangeiro para que possa ver plenamente. Ver, incorporar o corpo do outro, ouvir, aceitar o que se diz. Amar, cuidar, viver em comunidade.
Outro ponto curioso e bonito é como o filme incorpora com tamanha naturalidade a bissexualidade de seu protagonista, e como um trisal é formado de forma natural, sem conflitos de posse, de forma discreta e serena como todo o filme. Confesso que, em A matéria noturna, fiquei um pouco incomodado com a forma voyeurista um tanto fetichista como a câmera filmava o corpo de Bungué. Mas no filme atual essa opção ficou mais clara e integrada narrativa e visualmente.
Assim, o que surpreende em O deserto de Akin é como o diretor articula sua mise en scène de modo que aos poucos vamos entrando no cotidiano desses personagens. Um arremedo de roteiro, algumas poucas situações mas o diretor consegue reger uma mise en scène sutil que, de forma delicada, vai se deixando contaminar por esses tempos e que carregam ao filme uma certa atmosfera, um sentimento de cumplicidade entre esses personagens, e essas vidas pequenas, sem grandes ambições ou reviravoltas.

Em cada olhar, a vontade de se conectar e entender.
Confesso que fui me desarmando ao longo da projeção e me deixando encantar pelo tempo e pela atmosfera emanadas pelo filme. Algo discreto e misterioso, um certo poder de sedução, um clima cinematográfico mas também uma filosofia de vida, um certo élan, um modo de ser, um sentimento de deixar se apaixonar por pequenas coisas ou acontecimentos que surgem ao longo da narrativa, um desejo imanente de um contágio pelos corpos e poros da vida, mas sempre de forma discreta e serena, sem espalhafato. Uma sensação que eu já havia compartilhado em alguns momentos de A matéria noturna, mas que agora me pareceram mais límpidos e com maior potência.
Os personagens vão caminhando para certo equilíbrio em torno do comum mas sempre parece pairar uma certa atmosfera de desconfiança, ou de violência (o assalto em A matéria noturna, a ameaça do bolsonarismo nos alto falantes, o episódio de confronto físico direto na rua ou no bar). Nos dois filmes, uma dificuldade de os personagens finalmente se despedirem, e decidirem ficar.
Com A matéria noturna e este O deserto de Akin, Bernard Lessa vem construindo um caminho pessoal no campo do cinema contemporâneo brasileiro que merece melhor observação e que torcemos para que tenha continuidade com mais frutos.
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