
20º Panorama (2025) – Os Homens Que Eu Tive
Entre a delicadeza e a franqueza, um cinema feminino popular que desafia convenções
Por Marcelo Ikeda | 07.04.2025 (segunda-feira)

O Panorama Coisa de Cinema também exibe em sua programação filmes clássicos, e entre eles, destaco a exibição de cópia restaurada de Os homens que eu tive, de Tereza Trautman. Esse filme até então invisibilizado passou a ser comentado a partir dos movimentos de uma historiografia revisionista que vem buscando recuperar a filmografia de cineastas mulheres ao longo da história do cinema brasileiro.
Eu já havia visto esse filme há muito tempo atrás numa sessão de madrugada no Canal Brasil ainda em meados dos anos 2000 mas, na ocasião, não escrevi nada sobre o mesmo. Nem vou fazê-lo agora, apenas algumas linhas para expressar o meu espanto.
É realmente impressionante a forma frontal e direta que Trautman encontra para dar vazão em seu filme a todo um movimento dos modos de ser dos anos 1970. E basear-se numa personagem feminina é realmente seu grande achado para escancarar todos os paroxismos que esse filme resolve enfrentar.
Darlene Glória em uma personagem e atuação realmente inesquecíveis.
Os homens que eu tive me parece uma espécie de combinação muito particular, entre Gertrud (1964), de Carol Dreyer, e um filme da pornochanchada clássica como um A dama do lotação (de Neville d´Almeida, filmado depois, em 1976).

Cena do filme “Os Homens Que Eu Tive”
O lado dreyeriano do filme se expressa na proposta de uma frontalidade muito direta em perceber que o único movimento da vida só pode ser o amor – este é o único propósito da vida que se articula a uma verdadeira ideia de liberdade. Mas, românticos, ambos os filmes parecem convergir com uma famosa frase de W. H. Auden que dizia que “ser livre é muitas vezes ser só”. As convenções sociais parecem esmagar a possibilidade do ser humano viver em liberdade, guiar-se apenas e diretamente pelos seus desejos e mergulhar de forma intensa e plena no presente, sem pensar em nada a mais. Pois a vida, queiramos ou não, não é mera sucessão de instantes, mas um continuum em que, mal ou bem, criamos expectativas, memórias, desejos e expectativas.
Amar tanto pode ferir ou machucar.
É tão curioso que, num dado momento, o filme trafegue por uma sala de montagem, com o processo de criação no cinema. Um dos homens é um cineasta; o outro, um pintor. Em determinado momento, Pitty tranca-se no quarto para escrever. A criação artística parece ser os momentos em que a carga desses sentimentos da vida pode sedimentar ou cristalizar em torno de uma obra.
Viver, amar, criar. Como se pode viver amando tanto, como se não houvesse passado nem futuro, como se pudéssemos viver apenas guiados pelo presente, pelo desejo ardente, e nada mais?
O lado dreyeriano do filme é também expresso pelo rigor de sua mise en scène, algo talvez ainda pouco estudado, mas a forma direta e clara como Trautman organiza seus planos para que os modos de ser de seus personagens possam fluir.
Já o lado brasileiro do filme vem da sua surpreendente adesão à pornochanchada, sua inesperada vocação popular, e especialmente do seu humor.
Os homens que eu tive, ao contrário do filme do Dreyer, não é um filme filosófico abstrato e conceitual, mas um filme assustadoramente franco, direto, pragmático, e com isso consegue ser cada vez mais atual. Um filme tão delicado que às vezes consegue ser grosseiro ou mesmo cafajeste. Cafajeste, vulgar, grosseiro… palavras consideradas pejorativas e geralmente associadas a um imaginário masculino, mas que são do mesmo grupo semântico que … popular! Os homens que eu tive é um filme feminino, romântico e delicado, mas ao mesmo tempo franco e grosseiro. Um filme popular. Um cinema feminino popular que trabalha a partir desse paroxismo.

A realizadora Tereza Trautman, foto de Camila Freitas
Há um momento do filme em que o fotógrafo representado por Colassanti vai a um produtor pedir dinheiro para um filme indígena. O produtor diz que ele precisa recuperar seu dinheiro fazendo filmes de sacanagem. Os homens que eu tive é uma pornochanchada brasileira.
Na sessão de 2025 no Panorama, o público se divertiu tanto ao longo do filme que a sessão coletiva foi gradualmente evoluindo para momentos de risos e gargalhadas. Porque o filme é tão subversivo na frontalidade que ele se propõe, que ele inverte a pornochanchada e nos faz rediscutir os padrões sociais e sexuais das convenções propostas para homens e mulheres. Enquanto Cassy Jones (Luís Sérgio Person, 1972) é um homem sedutor, envolto em uma mise en scène moderna e colorida, a Pitty de Darlene Glória também atua na mesma libertinagem mas, desta vez, sua liberdade não ressoa para uma montagem frenética e cores coloridas psicodélicas. A languidez pragmática da mise en scène de Os homens que eu tive me soa absurdamente subversiva, porque tudo flui de modo muito natural e espontâneo.
Os homens que eu tive é um filme de uma pureza tão radical que emerge como subversiva.
O filme é também tão honesto em assinalar os limites da empreitada de sua personagem, sem nunca parecer moralizante. Amar livremente mas, acima de tudo, poder escolher. Não viajar com os amigos hippies, mas escolher ficar. Ficar em casa, escrever, trancar-se no quarto. Ter um filho, ser mãe. Viver é tudo isso. Darlene Glória é nossa Leila Diniz (que iria fazer o papel mas infelizmente morreu pouco antes, num acidente de avião). A liberdade desse filme é extraordinariamente comovente.
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