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Críticas

Mário de Andrade, o Turista Aprendiz

A identidade nacional revisitada

Por Ivonete Pinto | 08.04.2025 (terça-feira)

O mundo parece estar acabando em função da guerra comercial provocada pelos Estados Unidos, fora as tretas nacionais na economia e na justiça. Por essas e outras que ver Mário de Andrade, o turista aprendiz (2024), reveste-se de um momento de puro deleite, pois que nos transporta a um tempo em que se discutia o caráter dos brasileiros, ou a falta de, com um deboche cheio de inspiração. Nunca mais o teor dos debates foi o mesmo depois de “Macunaíma” (1928), escrito a partir de um mito indígena. A icônica obra de Mário de Andrade, mesmo que transversalmente, ocupa bom espaço no filme, seus comentários rendendo as melhores revelações sobre ele próprio e sobre o Brasil.

O documentário de Murilo Salles incorpora o espírito modernista na sua forma, tirando proveito da falta de orçamento para brincar com a cenografia e com a encenação. O roteiro, também dele, dramatiza uma viagem empreendida por Mário de Andrade ao Amazonas, em 1927, no barco (ou navio) chamado Vaticano. Para isto, conta com as anotações do viajante, publicadas no jornal  e depois no livro “O Turista Aprendiz”. Certamente há um grau de invenção nestas memórias, já que ele só as publica em 1943.  O tom que prevalece é de que a viagem a bordo do Vaticano para pesquisar o Brasil profundo foi divertida. Fora quase morrer num quase naufrágio. Andrade tinha a companhia da produtora de café e mecenas das artes, Olívia Penteado (Lorena da Silva), e duas sobrinhas dela (Dora Freind e Dora de Assis). Quem diria, nesta época o agro se interessava por arte.

Modernista, viajante, irônico — Mário de Andrade transforma o Brasil profundo em literatura e autocrítica.

O poeta é interpretado por Rodrigo Mercadante, no que vem a ser um ótimo trunfo para o documentário, porque sua semelhança física com Mário de Andrade impressiona. Apenas uma prótese dentária e um pouco de calvície foram suficientes. A vantagem do ator, é que não há imagens em movimento para que devesse imitar. Somente a cerca de 10 anos foi descoberta na Universidade de Indiana, nos Estados Unidos, uma gravação em um disco do escritor cantando músicas populares. A  caracterização de Mercadante, então, e ao que tudo indica, baseia-se no conhecido perfil do retratado: homem tímido, mas ao mesmo tempo galhofeiro e amante do carnaval. Um perfil que Mercadante conhece bem, já tendo vivido Mário de Andrade no teatro algumas vezes. No filme, um dos momentos mais bonitos é dele cantando uma música com uma das jovens.

Modernismo na berlinda – A semana da Arte Moderna de 1922 e o modernismo como um todo vêm sendo revisado, sobrando críticas aos seus protagonistas. Homens e mulheres ricos, que interpretavam o Brasil a partir de seu limitado ponto de vista de classe, e ainda por cima circunscrito a São Paulo. 

O filme de Murilo Salles não pretende tocar nesse vespeiro, mas traz piscadelas claras sobre esse contexto. Em uma das primeiras cenas, a fazendeira Olívia cobra de Mário uma coerência, afinal, ele propagava toda uma defesa da cultura europeia, mas esquecia-se que era descendente direto de negros. Uma crítica que ele engole em seco negando sua negritude, conceito que só surge anos mais tarde. É emblemático que, como seus próprios retratos divulgados na imprensa, incluindo o célebre quadro de Tarsila do Amaral que aparece recriado no filme, mostram um Mário de Andrade branco, sem traços da sua ascendência. Desse modo,  ficava próximo do grupo modernista. Sua postura sobre raça manifestada em alguns textos  deixava a desejar. Consta que não usava o termo racismo, mas “superstição”, como no livro “Aspectos do Folclore Brasileiro”, no texto “A Superstição da Cor Preta.” Chegou a dizer que a cor não era um problema no Brasil, considerando a fama e o respeito alcançados por um Machado de Assis.

Viajar também é se perder. E rir de si mesmo.

Murilo sai-se bem ao colocar a cobrança enfática da amiga Olívia e deixar o escritor sem palavras. Ou seja, o documentário não aprofunda, mas também não foge do tema. Assim como em outro tema conhecido, que é a homossexualidade de Mário de Andrade. Não há uma cena “sobre” o assunto, porém os sinais estão lá, através dos registros do próprio autor ditos por Rodrigo Mercadante.

Multifacetado – Poeta, crítico literário, romancista, professor, jornalista, músico… tantas facetas e tantos desafios para um documentário. Murilo Salles soube explorar todas elas escapando do didatismo,  centrando-se no texto do livro “O Aprendiz de Turista” e em dados biográficos documentados, portanto, na palavra do personagem e fatos de sua vida. Seu grande acerto tem a ver com isto e com a liberdade que um documentário poético permite. Nele, direção de arte e a fotografia nos levam na viagem de navio pelo amazonas, e nem percebemos o artifício da encenação. A inteligência e a criatividade do projeto, que lança mão de diversos dispositivos, entre eles  trechos animados, projeções e colagens, estão em perfeita articulação com o espírito modernista e com a verve do retratado. 

Com esse filme, Murilo Salles acrescenta mais um tijolo na representação do Brasil no cinema. Um tijolo inegavelmente autoral. Neste sentido, uma pequena digressão pode ser útil para localizarmos o cinema de Salles. Se formos pensar na sua filmografia, incluindo os filmes para os quais fez direção de fotografia, como Dona Flor e seus Dois Maridos (Bruno Barreto, 1976) e Árido Movie (Lírio Ferreira, 2005) poderíamos afirmar que se trata de um dos mais importantes cineastas brasileiros vivos. Tem uma obra variada em termos temáticos e narrativos  ─ ainda que desigual ─, aglutinadora de todo um pensamento sobre o Brasil. 

Neste passeio, vamos encontrar o diretor Murilo Salles no seu longa de estreia, ensaiando um certo existencialismo de corte político (Nunca fomos tão felizes, 1984); refletindo sobre a violência social em Como nascem os anjos (1996), examinando a identidade nacional em És tu, Brasil (2003). Também experimentou dialogar com a linguagem da recém criada Internet em Nome Próprio (2007), vencedor do 36º Festival de Cinema de Gramado. Foi em Gramado, aliás,  que  exibiu seu provocativo curta-metragem Pornografia (1992), onde um casal faz sexo (explícito) ao som do Hino Nacional (sobre esta sessão do filme, reproduzo  abaixo um trecho da entrevista de Murilo Salles à revista Teorema*). Pornografia pode ser evocado, talvez mais do que outros de seus filmes, pois carrega as tintas na sátira, importante combustível do modernismo,  quebrando em pedaços o patriotismo oficialesco. E, no caso do curta, infringindo uma lei.

O Brasil sempre foi difícil de explicar. Mário de Andrade preferiu rir dele.

Murilo Salles mergulha seu mais recente projeto no espírito do modernista, em especial Macunaíma, obra mais conhecida de Mário de Andrade e que já foi objeto de um documentário seu. Macunaíma não tinha sido escrita ainda quando da viagem etnográfica à Amazônia, mas  está presente no filme, porque o roteiro não se restringe a cronologias, trazendo também pensamentos de Andrade que apareceram em outros meios e outras épocas. E porque o personagem está no imaginário do país, na identificação do brasileiro com o herói sem caráter. Uma autocrítica em forma de galhofa, pois estamos num país que não se leva a sério, numa identidade meio torta. 

Entre documentários e ficções, o diretor carioca com incursões paulistas, com a voz de Mário de Andrade conseguiu traduzir suas inquietações antropológicas. Elas vêm no formato de crítica à identidade nacional, porém com camadas de humor sarcástico porque, afinal, não somos alemães.

*Teorema: Ainda falando em Gramado e seus momentos históricos, um dos pontos altos na trajetória do festival foi a exibição do curta Pornografia, no qual um casal faz sexo ao som do Hino Nacional. Qual a sua memória daquela noite?

Murilo Salles: Foi muito emocionante! Primeiro, foi uma surpresa e um espanto a Polícia Federal ter ido parar lá em Gramado. Afinal, não havia mais censura. Mas um maldito juiz expediu um mandato de segurança contra a exibição do filme, por causa da junção de cenas de sexo explícito com o Hino Nacional. A Polícia então interditou a exibição e ameaçava  nos levar presos (eu, a Sandra Werneck [co-diretora], o diretor do festival e o pobre coitado do projecionista!) caso passássemos o filme. Como não começava a projeção, as vaias chegaram intensas. Subimos no palco, eu e a Sandra, e contamos que a Polícia estava na cabine de projeção, que havia esse mandato de segurança, mas que nós ficaríamos muito frustrados e impotentes se deixássemos de exibir o filme, portanto, havíamos decidido pela projeção só da “imagem”, já que a conexão com o som é o que era proibida. Fomos felizes em comunicar que o som do filme era de trechos do Hino Nacional e que todos ali presentes poderiam “imaginar” o som, daí a nossa decisão de projetar somente a imagem. Voltamos para a cabine e depois de muito bate-boca conseguimos convencê-los de exibir só a imagem e demos início à tensa e conturbada projeção. Aos poucos começamos a perceber que a plateia, entendendo o filme, começou a cantar o Hino Nacional. Foi sensacional. Ficamos completamente emocionados, eu, a Sandra e as pessoas da equipe que nos acompanhavam. Eu chorei. Os caras ficavam me olhando meio passados, pois nada podiam fazer, enquanto eu chorava de emoção. Foi realmente um momento transcendente de cinema! (Revista Teorema, nº 13, dezembro de 2008, pp 29-39)

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