
Oeste Outra Vez
Um western onde a mulher vai embora
Por Ivonete Pinto | 21.04.2025 (segunda-feira)

Além do nordestern, temos agora o goiwestern, rodado na fordiana Chapada dos Veadeiros, em Goiás.
Nunca antes neste país o gênero western foi tão bem referenciado em um filme. E tivemos grandes nordesterns desde O Cangaceio, de Lima Barreto (1953, que ganhou o prêmio máximo em Cannes na categoria hoje inexistente de filme de aventura) e o próprio Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha (1964). Maria do Rosário Caetano escreveu “Cangaço – O Nordestern no Cinema Brasileiro”, com estes e outros títulos que aparecem como faroeste dos trópicos, que também são áridos. Mesmo o diretor de Oeste outra vez (2024), o goiano Erico Rassi, incursionou por estas paragens com seu longa de estreia, Comeback – um matador nunca se aposenta (2017), com Nelson Xavier. Podemos considerar que foi um ensaio tímido para o filme de agora.
É certo que não estamos em terreno novidadeiro. O que é original e o que faz de Oeste outra vez um grande filme é sua capacidade de se apropriar dos signos do gênero western, o cinema americano por excelência como disse Bazin, para refletir sobre algo inaceitável, ainda que manjado: a violência de outro gênero, o masculino. Menos mal que é um homem quem o faz, e despido de um certo cinismo encontrável em outras tentativas de diretores que querem pagar de feministas e se perdem nas intenções.

Mulheres ausentes, mas centrais – e finalmente livres da fala alheia. Por elas, eles se matam. Mas elas não estão mais lá.
Para quem ainda não viu esta produção premiada como Melhor Filme no 53º Festival de Cinema de Gramado: inspirado em Guimarães Rosa (Sagarana, 1946) e Howard Hawks (Rio Bravo, 1959), o roteiro apresenta uma história de homens solitários e rudes, que afastam suas mulheres em função do comportamento troglodita e não aceitam quando são abandonados. São cinco personagens, três deles centrais: Totó (Ângelo Antônio), que perde a esposa para Durval (Babu Santana), e o matador de aluguel (Jerominho/Rodger Rogério) contratado por Totó para se vingar de Durval. Na sequência, entram na história mais dois matadores (vividos por Daniel Porpino e Adanilo) e um deles, que também foi abandonado pela mulher, vai resolver a situação do seu jeito.
Fogão metafórico – No sertão de Goiás, no centro-oeste do País, habitam homens toscos incapazes de admitir que precisam se transformar, ou serão fadados à solidão. É claro que esta situação é de certa forma universal, mas graças à agenda feminista tem sido discutida inclusive por homens que passam por processos de conscientização (ver a crítica sobre os filmes do norueguês Dag Johan Haugerud aqui). Em Oeste outra vez, não há pregação discursiva em cima das pautas identitárias e provavelmente por isso funcione tão bem. Acreditamos nos personagens que vivem naquele fim de mundo, onde o celular não os leva para a modernidade das relações. Acreditamos muito na cenografia (Carol Tanajura) que mostra casas rotas, panelas encardidas, carros velhos, estradas poeirentas, móveis em pedaços, roupas sujas, botecos de beira de estrada, tudo de uma verossimilhança inegável, sem deixar de ser fluida. Se houvesse um prêmio para “melhor objeto de cena”, poderia ser dado ao fogão a gás que, de tão alquebrado, é movido à lenha. Como uma metáfora daqueles homens.

No sertão goiano, a solidão é castigo para quem não muda.
O aspecto do western, vale ainda frisar, é brilhantemente trabalhado no filme. Já nos créditos iniciais somos apresentados ao ambiente através de uma música que remete ao western clássico. Porém em seguida entra o Brasil profundo, brega e verdadeiro com a música de Nelson Ned. Outro detalhe da apropriação criativa: em determinada sequência, vemos ao fundo montanhas que reportam diretamente ao desenho de Monument Valley, cenário icônico de cineastas como John Ford. A sacada é que no mesmo enquadramento, podemos ver uma goleira de futebol, com a rede devidamente rasgada (fotografia de André Carvalheira). As imagens não nos deixam esquecer que estamos no Brasil e que a brutalidade masculina do velho oeste tem sua versão nacional. Apenas que agora as mulheres, que via de regra foram meros apetrechos coadjuvantes nas tramas, aqui são o leitmotiv. É por elas que se matam uns aos outros.
Tudo por meio de diálogos para lá de econômicos. Esses homens, por assim dizer, mal sabem usar a fala, expressão própria da civilização. Os silêncios preponderam às palavras. Nos poucos diálogos, algumas frases curtas são repetidas – às vezes só palavras soltas –, e acabam operando em chave cômica. São envoltas em estilo quase roseano.
Há quem opte por atribuir à pobreza, os modos rústicos de ser dos personagens. Evidente que as condições de vida afetam e podem determinar esse contexto. No entanto, esta é uma abordagem que não está no filme e não vem ao caso cobrá-la. Assim como a questão do feminicídio, que assusta com seus índices crescentes. Na visão do filme, a mulher vai embora antes de virar estatística.
Mulheres ausentes – Talvez a mais notável sacada do roteiro (também de Rassi) é que não há mulheres em cena. Afora um mecanismo para o próprio diretor não se comprometer com lugar de fala que não é seu, esta ausência permite a leitura de que as mulheres cansaram, ou, cansaram ao menos de um certo tipo de homem.
Há uma única exceção da presença em tela de uma mulher e ela se dá na abertura do filme. Totó e Durval entram em luta corporal, enquanto a mulher (Tuanny Araújo), que trocou o primeiro pelo segundo, impávida aguarda no carro, sem sequer olhar para eles. Para que olhar? Enquanto eles ainda brigam, ela sai do carro e a câmera a acompanha de costas. A mulher e a câmera abandonam os dois homens. E este é um exemplo de tantos outros procedimentos formais, onde não é preciso dizer nada. O filme de Rassi considera que o espectador, com um tempinho para pensar, consegue tirar suas conclusões. Alguém disse (Inácio Araújo?) que o filme é monótono. Não é. Ele dá tempo para que as soluções do roteiro e da fotografia sejam percebidas.

Entre John Ford e Nelson Ned: Brasil profundo em tom maior.
Um dado da construção de personagem também merece destaque. O primeiro matador é um velho carroceiro que junta entulhos. Aparentemente não existe comércio naqueles vilarejos a não ser o da cachaça; não existe produção de nada, aliás. Um deserto distópico, no sentido de que são lugares em princípio impossíveis de se viver. A cena final, quando pensávamos que este seria mais um caso de um diretor que não sabe como terminar seu filme, temos uma imagem-síntese desses homens solitários reunidos num bar. Cachaça e Nelson Ned como elementos narrativos que ilustram um universo empoeirado e hostil.
No exercício crítico de acharmos defeito, nem que seja só no casting, podemos citar esta situação pontual: Ângelo Antônio, um ator de estatura baixa, enfrentando o grandão Babu soa um pouco ridículo. Mas logo percebemos que isto tem uma função dramática elaborada, a partir da decisão de Totó de mandar matar Durval. E porque, principalmente, o tamanho da macheza de Totó é desmedido, não admitindo sequer que saiu com a perna machucada da peleia.
Ainda tentando achar furos no roteiro, somos quase convencidos de que uma segunda trama estaria sobrando. A entrada de uma dupla de matadores jovens (jagunços/capangas que no lugar do cavalo andam de Fiat Uno) parece se alongar demais, afinal, eles não são os protagonistas e queremos saber o que os protagonistas estão fazendo. Mas no desfecho tudo se justifica e passamos a enxergar um roteiro como de fato é, redondo e inventivo.
Por estas e outras, podemos botar fé no cinema brasileiro. Vez que outra surge algo que nos surpreende. Não esquecendo que além de todo aparato formal, temos em Oeste outra vez um tema cuja urgência está gritando aos quatro ventos. Empoeirados que sejam.
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