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Festivais

Privado: 50º Gramado (2022): Noites Alienígenas (texto 2)

Precisamos de mais Acre no cinema brasileiro

Por Luiz Joaquim | 05.12.2024 (quinta-feira)

GRAMADO (RS) – Quando Pollock respingava suas gotas de tinta sobre a tela branca no chão ele sabia que, de alguma maneira, elas iriam proporcionar um profundo sentido mais adiante, ali, quando elas estivessem entrelaçadas ao final do trabalho.

O espectador que vier a assistir Noites alienígenas, de Sérgio de Carvalho, poderá passar por sensação próxima a esta na medida em que vai observa sua dezena de personagens nos sendo apresentados, um a um, aparentemente de maneira errática, sem relação direta um com o outro, até que, lenta e finalmente, perceberá um todo que lhe dá uma forma assustadora e deprimente de um aspecto de Rio Branco, no Acre (estado de origem do filme), que, ignorante que somos, não alcançávamos a dimensão.

O filme foi o terceiro a ser apresentado (exibiu ontem, 14) dentro da competitiva de longas-metragens brasileiros do 50º Festival de Cinema de Gramado.

Não vá pensar, porém, o leitor mais afoito, que se trata de um roteiro – aqui coescrito por Carvalho, Rodolfo Minari, Camilo Cavalcante (o pernambucano) – que foi construído sob a sombra do que o roteirista Guillermo Arriaga tornou popular em Hollywood na primeira década deste século.

E não é assim pois Carvalho, Minari e Cavalcante – moldados pela montagem exemplar de André Sampaio – fogem do esquematismo saliente comum nas tranças do Arriaga. No filme acreano, a desorientação do espectador para onde está sendo levado não se apresente na forma de peças de quebra-cabeça a serem encaixadas para só depois ganhar função porque elas, individualmente, em Noites alienígenas, guardam em si uma força com identidade própria, que, por si, nos satisfazem independente do bloco como um todo que ela irá formar.

Já de cara, após a abertura, por exemplo, temos um plano sequência de dez minutos, sustentado pela fotografia de Pedro von Krüger, que parece bailar com a competência do ator Chico Diaz cantando Raul Seixas para, dai, engatilhar a entrada do rapper Gabriel Koxx e, ainda, incluir no mesmo plano a primeira tensão do filme por meio de um diálogo.

Entre as principais peças no enredo de Noites… está o Alê (Diaz), antigo negociante de droga na periferia de Rio Branco, fã de Raul Seixas e adepto de ideias relacionadas a existência de alienígenas. É também uma espécie de figura paterna do seu ‘funcionário’ Riva (Knoxx), de 17 anos, cada vez mais desorientado quanto ao rumo de sua vida. Ele expressa isso explodindo com violência física na medida em que sua sensibilidade artística para a pintura e para a música não tem escoamento.

Riva é apaixonado por Sandra (a ex-BBB Gleice Damasceno), mãe de Paulinho, no enredo ali pelos seus dois anos de idade, e, ao contrário do namorado Riva, ela planeja um lugar no mundo pelo estudo. Paulinho é filho de Paulo (Adanilo Reis), viciado no último estado da dependência química a ponto de roubar a própria mãe. A mesma mãe que, numa última instância, recorre à descendência indígena, com suas liturgias, para resgatar o seu filho. Já a mãe de Riva, Beatriz (Joana Gatis) tem um passado incerto, veio de uma cidade litorânea (Recife?) para morar em Rio Branco por um motivo que, aparentemente, a faz não querer retornar para a terra natal.

Há ainda outras peças, de luz, como Kika (Kika Sena), a amiga trans de Sandra, ou de escuridão, como o formado pela facção juvenil de traficantes que não hesita em assassinar quem trair a ‘família’.

Este bloco inteiro, uma vez formado (ou, seja, o filme por completo) resultado, podemos dizer, numa obra memorável. Marcante não apenas para o cinema regional, mas para o cinema brasileiro. Por esse aspecto, vale salientar o belo serviço feito pelo Festiva de Gramado em abrir, a ele, a sua enorme vitrine.

E não se pode deixar de dizer que, mesmo perturbador pela realidade social que denuncia e representa dramaturgicamente (e que dramaturgia!), Noites alienígenas também nos emociona por uma outra perna dessa realidade social – no caso, boa: a da cultura juvenil local.

Aquele que vir o filme será pego de surpresa não apenas pela que há de politicamente contundente e denunciante aqui – o aumento vertiginoso de aliciamento e crimes contra jovens a partir da chegada, ali, de facções criminosas do Sudeste -, mas também por apresentar um pujança cultural universal, também presente, que passeia pelo Slam (disputa de rimas por música), pelo Rap e as brincadeiras tocadas pelos Bboys da periferia acreana, sem esquecer de agregar com função dramatúrgia para o enredo – bom dizer – expressões indígenas locais.

Esse roteiro que a tudo amarra numa costura tão bem traçada, não nos deixa nunca sozinhos no filme, nem desatentos a essa trama de uma tragédia social que não é particular do Acre mas, ali, ganha outra dimensão quando pensamos no envolvimento dos indígenas nesse medonho processo do branco com o seu tráfico de drogas e escola de assassinos.

Noites alienígenas parece possuir dois finais, não no sentido alternativo, mas naquilo que se refere a duas sequências arrebatadoras encadeadas: uma ilustrando um ritual na floresta e outra envolvendo Alê e Beatriz, com o gritante talento e química entre Chico Dias e Joana Gatis, numa desajeitada dança de desvalidos.

Ainda que este desfecho final seja eficiente, mais do que isso, que seja belo, a sequência anterior parece guardar uma força fora do escopo do que estamos preparados para ver no predominante cinema brasileiro. A composição cênica do ritual, a árvore frondosa ao fundo, embalada pela trilha sonora com o cântico indígena e a câmera flutuante de von Krüger, nos levam a um lugar que é desejado pelo filme, ou seja, um lugar que merece o respeito e a reverência de todos, porque, afinal, a natureza somos nós mesmos.

Mas, seja como for, o bom é que Noites alienígenas existe, vai ganhar destruição nacional pela Vitrine Filmes e Gramada ontem nos deixou com a sensação de que precisamos de mais Acre no cinema brasileiro.

MEXICO – A noite de ontem também apresentou o mexicano El camino de Sol, de Claudia  Sainte-Luce, sobre o sequestro do menino de 7 anos, Christian, a plena luz do dia e diante da unidade habitacional onde reside seu pai, e como a mãe Sol (Anajose Aldrete) toma para a si decisão de resolver o problema diante da indiferença da polícia.

A angústia de Sol é a mesma da de Maria, de Marcelia Cartaxo, em A Mãe, mas por razões e contextos distintos. O sumo é, enfim, o mesmo, o gradual mergulho no fundo do poço dessas duas mães e, assim como Marcélia, Anajose nos deu em Gramado uma performance comovente, mas talvez este seja mesmo o grande e único destaque no filme de Sainte-Luce.

A noite contou ainda com os curtas-metragens sergipano Ima de geladeira, de Carolen Meneses e Sidjonathas Araújo, e o paulista O elemento tinta, de Luis Maudonnet e Iuri Salles.

 

– viagem a convite do festival

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